29 de fevereiro de 2012

RIBEIRO, O GRAVE

Imagem em gepoteriko.pbworks.com.
Nada do que o Ribeiro dissesse soaria trivial. Tinha ele na voz a solenidade dos atos oficiais, a impostação dos porta-vozes. Se chegasse a um bar e pedisse café, não o havendo, o atendente corria a lhe fazer um quentinho, passado na hora. Porque Ribeiro não pedia simplesmente um café: ele estabelecia uma obrigação para seu interlocutor.
E era assim com tudo.
Certa vez, pousou-lhe no braço um nojento pernilongo transmissor da dengue, para fazer dele mais uma vítima, quando Ribeiro disse:
- Um aedes aegypti!
O inseto recolheu seu agulhão fatídico e voou para outra vítima, longe da voz impostada e solene de Ribeiro.
Mas ele já nasceu assim. Seu primeiro choro foi completamente diferente do choro de todas as demais crianças recém-nascidas do mundo. Ele não chorava implorando mamar, ou reclamando desconforto. Ele chorava para estabelecer princípios, para marcar território, como fazem algumas feras do mundo animal. E isto tanto seu pai, quanto sua mãe perceberam. O que motivou, inclusive, uma constatação paterna, ainda na maternidade, que foi definitiva para a identidade do menino:
- Este é um Ribeiro!
E jamais usaram o nome com que o batizaram ou o registraram, Genivaldo. Apenas Ribeiro. Era até esquisito, quando pai e mãe davam notícias para os avós, na distante Miracema:
- Mãe, Ribeiro teve dor de barriga hoje o dia inteiro. Fiquei louca. Ele chorava como se estivesse discursando no senado da república.
Rompeu a infância e a adolescência com esta ascendência sobre os colegas, apenas pela impostação da voz. Ribeiro dizia, a molecada atendia! Ribeiro não respondia à chamada na sala de aula, porque faltara, e parecia que a aula perdia sua aura de formação da juventude da pátria.
Na muda vocal, com ele não houve o vacilo entre voz grossa e voz fina, às vezes comum em certos meninos. Este narrador, mesmo, teve um primo que parecia uma estação de rádio mal sintonizada, tal era a oscilação vocal. Com Ribeiro não se deu nada disso. Ele passou de voz grossa de menino, para baixo de ópera. Ou melhor, para o tal baixo superprofundo – timbre raríssimo no bel canto –, embora ele nunca tenha tido a veleidade de cantar, porque, como dizia, era mais desafinado que João Gilberto, no seu samba famoso.
Por isso é que, às vezes, tinha até cuidados em falar em determinados ambientes. Como gostasse muito de frequentar lugares sofisticados, restaurantes estrelados, champanharias badaladas, bars à vin, policiava-se para não subir o tom da fala, sob risco de balançar garrafas e taças, como acontecera certa vez em casa de seu sogro, ao comemorar o noivado com Clarisse. O serviço de vinho de cristais da Boêmia colocado sobre o aparador de vidro da sala tremeu todo, quando ele pediu a mão da moça em casamento.
Para se ter uma ideia do respeito que a voz de Ribeiro impunha nos ambientes, quando ele dizia simplesmente “vou tomar uma cerveja”, a latinha já gelava automaticamente, caso estivesse fora do refrigerador.
Tudo que ele dizia parecia uma definição de princípios, uma demonstração de teoremas astrofísicos, os termos de acordos internacionais para o uso de energia nuclear. Nada era corriqueiro, vulgar, ordinário. Nada soava engraçado. Também por isso é que jamais conseguiu contar uma simples piada que fizesse os outros rirem. A voz de Ribeiro estava mais para nota de falecimento, para leilão de massa falida de grandes corporações.
Quando foi a uma entrevista para o emprego com que sempre sonhara, locutor da Voz do Brasil, não foi aprovado. É que o entrevistador passou as informações sobre a voz do entrevistado ao seu chefe de RH, que as fez chegar até ao superintendente da emissora. Este ficou com medo de perder o cargo para Ribeiro, só pelas informações que tivera, sem mesmo ter ouvido a voz do cara.
Depois de procurar aqui e ali e não achar trabalho, justamente por esse motivo, Ribeiro resolveu abrir uma empresa de comunicação sonora: equipou frota de utilitários com um sistema de som, que saía pela cidade anunciando de um tudo: desde promoção de supermercado, até morte de morador da cidade.
E não havia ninguém que não atendesse ao chamado de Ribeiro. Era tiro e queda: cebola anunciada, cebola vendida; morto proclamado, velório bombado.
A voz de Ribeiro era sua carga mais pesada, e dela ele só escaparia com a própria morte.
Oh, sina!

28 de fevereiro de 2012

NÃO ME CONTE SEUS SEGREDOS (sinceridade demais às vezes ofende)

Não me conte seus segredos
Sou um túmulo aberto
Um coração boquirroto
Não comungo mal secreto
Se você tem seus segredos
Não sou o amigo certo.

Se você foi corneado
Não conte isto pra mim
Periga não me conter
O que será o seu fim
Vou contar pra todo mundo
Da faculdade ao jardim.

No entanto se a notícia
Versar sobre o dinheiro
Que você anda devendo
A mais de um cavalheiro
Aí eu sujo o seu nome
Como tábua de chiqueiro.

Ou talvez seja a tramoia
Que você fez no trabalho
Recebendo um por fora
De encher o agasalho
Aonde você carrega
Aquilo que rima aqui,

Como já fizeram demais
Políticos picaretas
Eu não sei guardar segredo
Principalmente mutretas
Assim não me venha contar
Que eu armo até retretas.

E vou espalhar na praça
Na sinuca e no armazém
Na pelada de domingo
Do jeito que me convém
De não ficar sem saber
Do doutor ao Zé Ninguém.

Então está avisado
Guarde lá o seu segredo
Porque comigo é assim
Não tenho um pingo de medo
Se não for pra repartir
Não venha contar pra mim
Guarde lá o seu segredo.

27 de fevereiro de 2012

PALAVRAS

do baú tiram-se palavras empoeiradas
envelhecidas
que são submetidas a uma limpeza
racional
no armário do cérebro
e arrumadas em ordem alfabética
mas na torrente da boca
é aquele atropelo de sempre
e uma incompreensão
que ninguém entende

Imagem em palavras-de-pedra.blogspot.com.

26 de fevereiro de 2012

PARODIANDO DRUMMOND

Talvez Carlos Drummond de Andrade seja o meu poeta favorito. Certamente foi o que eu mais estudei no Curso de Letras.  É dos maiores, mais competentes na arte. Há muitos outros aí. Até mesmo desconhecidos. Mas ele é o cara!



Autocaricatura de Drummond (ufscar.br)

Inclusive, certa ocasião – final dos 70, princípio dos 80 –, passei por ele na Rua São José, em frente ao Edifício Menezes Cortes, e não quis perder a oportunidade:
- Boa tarde, poeta! – disse-lhe eu, todo me querendo.

Com um amarelo sorriso de mineiro desconfiado, respondeu:
- Boa tarde!

E passamos um pelo outro. (Este é um dos troféus que tenho na vida: falei com Drummond!)
O meio acadêmico, às vezes, escolhe um para seu panteão de culto e dedica esforços para deslindar o fazer poético daquele autor, desvendar-lhe os mistérios, perseguir seu caminho literário.

Se hoje, por exemplo, temos Cruz e Souza entre nossos poetas mais fulgurantes, isto foi obra de outro poeta, Manuel Bandeira, que o “redescobriu” quase um século após a morte do nosso maior simbolista.
Literato é assim mesmo. Lança sua obra, com pretensão ou não, não sabe o que vai dar e, então, pode tornar-se um clássico. E cai no gosto.

E sua obra? Ora, tendo sido publicada, cai em terra de ninguém.
Com frequência, aparecem uns engraçadinhos que dela se apropriam, por vezes descaradamente, como certo compositor brasileiro muito amado, que se apropriou de um poema de um poeta irlandês, publicado no número um da HQ Hulk, cujos editores também já se haviam apropriado do dito poema.

Outros, com bem mais frequência, fazem gracinhas, paródias, aproveitando-se do prestígio do poeta consagrado ou da visibilidade de determinado texto, para dele tirar proveito.
Quando eu era criança, minha mãe, que sempre gostou de poesia e tem até um livro publicado, declamava para mim a versão original de um soneto muito conhecido e sua paródia. O original, de Alceu Wamosy (1895-1923), era o famoso soneto Duas almas: “Ó tu, que vens de longe, ó tu, que vens cansada, / Entra, e sob este teto encontrarás carinho:...”

Foi exatamente isto que fiz com Drummond, talvez o meu poeta favorito. Tomei um de seus textos mais conhecidos, com uma estrutura métrica e melódica tradicional, de uma singeleza ímpar, e fiz uma paródia terrível, sem a mínima arte.
Mas o que fazer? Publicou, virou terra de quase ninguém, como disse.

Aí vão os dois: o poema-arte de Carlos Drummond de Andrade e a minha arte do poema dele.
Permitam-me um riso sacana: hehehehe!

MEMÓRIA

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão

Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.

DESMEMÓRIA (Parodiando Drummond)
Amar o obeso
Traz mais sobrepeso
Para teu colchão.

Nada pode o ouvido
Contra o estampido
De imenso canhão.

As balas perdidas
Muito distraídas
Te acertarão.

Mas as flores lindas
Restarão ainda
Sobre teu caixão.


Desculpe, leitor! Perdão, Drummond!

25 de fevereiro de 2012

LÚBRICO

quantos verdes anos tem teu corpo
este tépido espaço que me preocupa?
nem tantos tem nem tão poucos
que não me possam meter em desespero
quando o vejo passar assim maneiro
seguido de gemidos e sussurros.
quantas ancas meu deus tem teu corpo
numa só anca que me deixa louco?
é uma só com certeza eu bem que vejo
mas no delírio a que me empurra tal loucura
eu conto ancas em número de desejo
ancas tais ancas mil estou seguro.
mas quantos sexos enfim tem essa escura-
clara fenda que não tenho mas que sinto viva?
milhares milhões de sexos de todos os tamanhos
de todos os modelos para cada tara
mas a cada vez a frustração me invade
por não prover-te com a minha arte
em que seríamos a beleza pura.

Pablo Picasso, Femme couchée, 1932,
Musée national d'art moderne, Centre Pompidou, Paris,

24 de fevereiro de 2012

LOURDINHA FUGIU PARA O RIO DE JANEIRO

Lourdinha havia combinado com Prudêncio fugir com ele na primeira lua nova dali em diante. Iriam para o Rio de Janeiro de trem, desde a estação de Santo Eduardo. Ninguém soubesse, mas já estava tudo acertado entre os dois, os únicos a dividirem tal segredo.
E era um segredo mais do que bem guardado. É que Lourdinha era casada com Vanderwal, muambeiro de relógios e joias falsificadas, as quais ia pegar no Rio de Janeiro de três em três meses. Já Prudêncio, imprudente desde o berço, só para contrariar os pais, estava noivo de Anunciata, que dormia e acordava na certeza de subir ao altar, no mais tardar, no mês de maio do ano que vem, “se não falhar aquela novena que fiz para Santo Antônio”, o padroeiro da vila.
Prudêncio trabalhava no ramo da panificação e da prevaricação, amassando a massa, enrolando a rosca, moldando o pão e bolinando mulher alheia. Aí, enquanto o cilindro batia a mistura de farinha, gordura, água, leite, açúcar e fermento, ele pulava a janela da fogosa Lourdinha e aplicava os conhecimentos adquiridos na arte da panificação, de não lhe deixar centímetro de carne sem seus apertos. Naquela hora, Vanderwal “deveria de estar na roda do sono das três da madrugada”, como ela dizia, sem saber das invasões noturnas possíveis e impossíveis da Lapa e adjacências, na volta dos cinquenta para os sessenta – o Rio ainda a capital desta república de bananas e tramoias. E o hotelzinho de Vanderwal dava de olhos sobre os Arcos.
Mas isso também não vinha ao caso. Estivesse o Vanderwal em sossego ou em farra, o que importava para Lourdinha eram as reinações sobre sua pessoa que Prudêncio, o imprudente, pudesse realizar e às quais ela se entregava com uma sem-cerimônia de, às vezes, varar a noite em gritinhos e funga-fungas.
Talvez o único que desconfiasse de alguma coisa fosse o Antônio Precisval, que passava em frente à padaria e à casa de Lourdinha, no oco da madrugada, para ir tirar leite das vacas no curral do Chiquito, e, vez e outra, via um vulto escuro – a cor de Prudêncio era chegada a um tisnadozinho – de avental branco, a romper com ligeireza os três ou quatro metros do beco que separava o estabelecimento comercial de relativo respeito da alcova da saliente. Precisval também não tinha nada com aquilo. E, de mais a mais, cada um que cuidasse de suas cabritas. Era o que pensava.
E Lourdinha ficava ao Deus dará. Sem filhos com que se ocupar, era aguardar a volta do marido cheio de muambas, que depois, em lombo de burro dolente, saía a oferecer em toda a vila e em mais algumas casas perdidas por entre plantações e pastos. Nesses interregnos, como dizia o Nico Fragoso do cartório, ela liberava a libertina que morava dentro de si, de ameaçar transformar a vila em filial de Sodoma e Gomorra.
Conforme o combinado, na data aprazada, Prudêncio colocou bilhete de despedida, em letra caprichada, dentro do pão especial que preparou, para o entregador levar, de manhã cedinho, à casa da noiva Anunciata. Já de mala arrumada e acertado, com o Amim, o carro de praça – como na vila se chamava o táxi –, que levaria o casal de pombinhos desvairados até a vila de Santo Eduardo, às margens da estrada de ferro Vitória-Rio, pegou Lourdinha, e saíram os dois fujões procurando passagens escuras na vila até chegarem à casa do chofer de praça – como à época se chamava taxista –, que dirigiu célere, a cerca de quarenta/cinquenta quilômetros por hora –, até a estação.
Imagem atual da estação, que na época era uma belezura (em estacoesferroviarias.com.br).

O trem vinha de Vitória e passava por Santo Eduardo por volta das seis horas da manhã, se não houvesse nenhum atrapalho na linha, se tudo corresse no previsto.
Assim chegaram a tempo de comer uma pamonha, tomar um café com leite quente de arrancar a pele do céu da boca e comer um pão fresquinho com manteiga da roça. Até essas pequenas coisas estavam com o paladar diferente.
Naquela mesma hora, porém, também chegava o Noturno do Rio de Janeiro e dele desembarcou no fim do cais da estação o traído Vanderwal, com seu chapéu de feltro, sua mala de couro cheia de traquitanas. Voltara antes do previsto e só não pegou Lourdinha aguardando o Expresso que vinha de Vitória, porque ela correu a se esconder no banheiro.
Espantou-se ele por encontrar o padeiro de guarda-pó e mala na mão, em hora que devia estar acabando de desenfornar os pães que preparava para a vila comer. E lhe perguntou inocentemente:
- Vai para Campos, Prudêncio, procurar emprego melhor?
Embaraçado, Prudêncio disse que tinha morte certa de parente em Olaria e que estava indo para o Rio de Janeiro a tempo de chorar o morto, em companhia dos demais membros da extensa família Carvalhosa. E aproveitou para dizer que o carro de praça do Amim estava ali ao lado, aguardando para ver se haveria passageiro para Liberdade.
Vanderwal agradeceu a informação e correu para não perder a condução.
Ao chegar a casa, deparou-se com o bilhete da mulher, dizendo que tinha ido para Manhumirim chorar uma prima que morrera no parto do sexto filho macho que punha no mundo. Vanderwal, em sinal de respeito, ainda tirou o chapéu e pediu a Deus pela alma da pobre coitada.
No final de mais quatro semanas, Vanderwal recebeu carta explicativa de Prudêncio, dando conta de todos os detalhes das reinações e da fuga e lamentando, inclusive, também sua atual condição de traído. Ele já não se responsabilizava mais pelas loucuras de Lourdinha, que se encantara pela vida airosa e desairosa das meninas que frequentavam as calçadas do entorno da Praça Tiradentes, naquela mui heroica e leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. E aproveitava a oportunidade para, descaradamente, pedir a ele que intercedesse junto ao dono da padaria, seu Vicente Celestino, xará do cantor de Acorda Patativa, pela recuperação do cargo de amassador de pães.
Vanderwal, do alto de seu despeito, também amassou a carta, que jogou no borralho em que preparava o café da manhã, e exclamou firme:
- Você há de comer o pão que o diabo amassou, padeiro dos infernos!
Anunciata, pelo que se soube posteriormente, deu de fazer trovas de amor, que declamava em ocasiões solenes ou não. Era só haver uma brecha num amontoado de gente, para que destilasse sua intragável dor de cotovelo nos ouvidos alheios.

23 de fevereiro de 2012

VELHAS DORES

Aqui ao lado estão as velhas dores
De que lhe falei
E sobre as quais não tenho ascendência.
Doem-me as costas
Dói-me o lombo e a paciência
Dói-me essa vontade estranha
De não sentir doído
O doido estar perdido nesta vida.

E eu lhe falei
Com certo pudor normal
Que essas dores mimosuras do meu ser
Seriam mais que preocupações.

Aqui estão elas servindo a estes versos.
E lá fora enquanto uma escoliose me arruína
Os problemas sociais se multiplicam
Como que tivessem alguém com interesse neles
Tal como eu nessas minhas velhas dores.

Van gogh, Sapatos, c. 1888 (em pimptoes.wordpress.com).

22 de fevereiro de 2012

PEQUENOS ANÚNCIOS VI


No intuito de angariar fundos para o blog, tendo em vista que dissipei todas as reservas atrás de trios elétricos, blocos carnavalescos e bandas em Ipanema, este espaço traz a público mais alguns pequenos anúncios. Se for de seu agrado algum deles, é só escrever que damos o endereço completo do anunciante.

Aproveitem!
1. ALUGO, ARRENDO OU VENDO antigo cinema pornô para qualquer tipo de igreja interessada. Mando dar uma lavada no ambiente, para tirar todo resquício de pecado que possa ter resistido em poltronas, tapetes, cortinas e paredes. Desinfeto e desodorizo. Reconheço que os frequentadores eram bastante salientes. Porém cedo o espaço limpinho, limpinho. Preço a combinar.

2. IGREJA GLOBAL OMO TOTAL: Traga sua alma suja, imunda ou encardida, que aqui temos a solução. Deixamos de molho em nosso sabão espiritual milagroso. Em pouco tempo, ela estará mais branca do que neve. Também expulsamos diabos diariamente, com hora marcada. Recuperamos todo tipo de pecador, até mesmo o mais empedernido, por módica contribuição mensal, no valor de um décimo do seu salário. É pegar ou largar e, depois, pagar no fogo eterno do inferno. Depois não diga que não foi tocado pela graça, seu incréu inveterado!

3. PASSO PONTO: Ponto de macumba, livro de ponto, relógio de ponto, cartão de ponto, ponto de ônibus, ponto de táxi, ponto final, ponto e vírgula, dois pontos, ponto de exclamação, ponto de interrogação, ponto de reticências, ponto atrás, ponto de crochê, ponto cheio, ponto de cruz, ponto cego, ponto de vista, ponto fraco, ponto pacífico, ponto cardeal, ponto de apoio (Aí, Arquimedes, bom pra ti!), ponto morto, ponto de bala, ponto eletrônico, ponto de ebulição, ponto de condensação, ponto de congelamento, ponto de fusão, ponto de fuga. Se é ponto, é comigo mesmo. Não durmo no ponto.

4. PASSO RIFA: Rifa-se um porco que já está na engorda para o próximo Natal. Extração pela loteria federal do dia 22/12. Zé de Lino não pode comprar desta rifa, porque ainda não pagou a anterior do Natal passado. Seu Demétrio também não, pelo mesmo motivo (inclusive levou adiantado o troco do dinheiro que ia dar na semana seguinte; agora, nem um, nem outro). Em casa de dona Joaninha também não vou vender, porque lá todo mundo dá calote. E o pessoal que joga sinuca no bar do Roldão, esse mesmo é que não paga gente viva! Acho melhor eu mesmo matar esse porco e vender para o açougue do Ciloca. Desisto.

5. LEIO SORTE: Quiromante, cartomante, jogadora de tarô e o diabo a quatro, recentemente chegada da Bahia de São Salvador, com muito bom conceito nos meios esotéricos, leio sorte até de pessoa azarada. Fui, inclusive, alfabetizada na leitura das linhas da mão de analfabeto e pegador de cabo de enxada, quanto mais de mãozinha fina de doutor. Uso até lupa de aumento, para escarafunchar a vida pregressa, regressa e, por que não dizer, progressa do consulente. Não deixo um desvão da vida do cabra, sem meu olhar perquisitivo e inquisitivo. Se tiver vergonha de algum segredo, é melhor não me procurar, que vejo de um tudo!
Foto de divulgação, para se ter noção do tamanho da tuba
(em johnochwat.wordpress.com)
6. TOCADOR DE TUBA procura emprego em orquestra sinfônica, sânfonica ou filarmônica; em grupo de pagode ou de forró; de rock pesado; de hip-hop ou funk; de sertanejo universitário ou pré-escolar; porque não há mais bandas de música por esse país afora. Até a gloriosa Furiosa está de recesso. Se não conseguir, vou botar a boca no trombone!

7. BLOCO CARNAVALESCO FÍGADO ASSUSTADO: Vendo fantasia do bloco carnavalesco, com todos os seus penduricalhos. Ou troco por um vidro de Sal de Frutas Eno ou um envelope de Engov. Negócio rápido, senão acabo botando os bofes para fora.

20 de fevereiro de 2012

DIA SEGUINTE (EITA, RESSACA!)

Andei tumando cachaça
Cuantrô e stainrega
Rabo-de-galo e martini
Sangue de Boi, jurubeba
Agora neste momento
Estou cuspindo baleba

Meu ‘figo’ é reclamão
No entanto não se entrega
Mandei pra dentro do bucho
Chá de boldo e berdoega
Pra ver se paro de vez
Do mal de cuspir baleba

Não sei se o efeito vem
Para acalmar a refrega
Que lá dentro se instalou
Por baixo da espinhela
Porque não aguento mais
Estar cuspindo baleba

Prometo a todos os santos
Mudar para outra regra
Deixar essa vida doida
De andar bebendo às cegas
Se a partir de agora
Parar de cuspir baleba

São Basílio e São Gregório
Mais a Santa Genoveva
Santo Antão e Santo Amaro
O Venerável São Beda
Hommer Simpson, criação de Matt Groenning,
(imagem em endomingados. blogspot.com).
Valei-me nesse momento
Não quero cuspir baleba

Nunca mais vou beber pinga
Não vou fazer mistureba
Se eu entrar em botequim
Alguém aí me entrega
Se a partir desse instante
Nunca mais cuspir baleba

Eita ferro bem tomado!
Eita ressaca de regra!
Eita sujeito mais fraco!
Que a sua laia não nega
Se não der um de acordo
Eu volto a cuspir baleba.

18 de fevereiro de 2012

O JOGO DE DESPEDIDA DE MANÉ GARRINCHA


Tinha eu alguns meses de namoro com Jane, essa vascaína desavisada que tomou conta da minha vida desde então, quando nos propusemos a participar da festa da despedida do Anjo das Pernas Tortas. Acompanhou-nos o amigo de fé Rogério Andrade Barbosa, escritor de muitos livros e prêmios e botafoguense por direito hereditário, dado que seu pai, o grande professor Osmar Barbosa, infelizmente já falecido, descia as colinas de sua aprazível Nova Friburgo, para vermos o Botafogo jogar no Maracanã.
Com toda a sinceridade, tive de pesquisar a data em que ocorreu a despedida, já que o tempo que passa torna-se, em minha memória, um cipoal de difícil acesso. Isso ocorreu, assim, num dia 19 de dezembro de 1973. Dos fatos, não me esqueço.
O jogo foi à noite e chegamos quase em cima da hora, dado que o trânsito estava infernal. Era um dia útil, em que a cidade não para absolutamente para nada.
O Maracanã estava insuportavelmente cheio. Tenho a impressão de que só num Brasil e Paraguai, pelas eliminatórias de uma Copa do Mundo de mil novecentos e não sei quando, havia mais público. É que nesse jogo fiquei espremido, sentado de lado, num degrau da arquibancada.
O jogo, apesar das estrelas, dos craques, não tinha importância alguma, não fosse em homenagem a um dos maiores jogadores de futebol de todos os tempos: Mané Garrincha.
Não sei qual foi o placar, os jogadores que lá estiveram, a não ser o Mané, já com suas mágicas pernas pesadas de tantos desatinos que fizera, mas que, por mais aquela noite, encantaram a imensa galera que para lá se dirigiu. Tenho a absoluta certeza de que torcedores de todos os clubes do Rio de Janeiro lá estavam a reverenciar o jogador que mais soube dar alegrias aos apaixonados pelo futebol.
Garrincha ultrapassava os limites da paixão dos botafoguenses. Ele era praticamente uma unanimidade, assim como Pelé (não incluo nessa unanimidade os argentinos, por questões óbvias!), mas com um diferencial: enquanto Pelé era um craque e um atleta excepcional, ultracompetente, Garrincha, em não sendo atleta excepcional, era um craque como nunca se viu. Jogava bola de um jeito alegre, moleque, brincalhão, que enchia de felicidade os que o iam ver nas partidas.
Terminado aquele jogo melancólico, para quem foi a Alegria do Povo, a multidão começou a sair do estádio. Para não enfrentar o empurra-empurra normal nessas ocasiões e para dar uma de cavalheiro como minha namorada, resolvemos esperar um pouco mais.
Ao sairmos, os ônibus que passavam estavam apinhados. Por essa época, ainda todos duros, ninguém tinha condução própria e dependíamos do transporte público. Disseram-nos, então, que talvez fosse mais seguro pegar um na Praça Saens Peña. Fomos andando a pé até lá e acabamos dormindo na calçada, eu e Rogério fazendo revezamento como sentinelas, aguardando que o primeiro coletivo começasse a circular às cinco da manhã.
Chegamos a casa, em Niterói, pelas sete/oito horas.
Tomei um banho e fui trabalhar tresnoitado, mas com uma certeza na minha vida: eu tive a honra e o orgulho de estar presente ao jogo de despedida do grande Mané Garrincha. E essa bola não há zagueiro que me tire!

Mané Garrincha (em algosobre.com.br).

17 de fevereiro de 2012

NEM TODO PROBLEMA É INSOLÚVEL

Um dia o homem acorda
E olhando-se ao espelho
Vê que no lugar de seus vastos cabelos
Havia então uma devastação.
E toma um susto:
Estava completamente calvo!
E a muito custo,
Imagem em charges.uol.com.br
Indagando pelos seus pelos,
Ficou pensando no que ocorrera.
Era uma sexta-feira
E no dia seguinte
Iria a uma grande festa.
E ficou triste a princípio
Porque constatou que sua testa
Chegara até a nuca.
Então para sair da grande sinuca
Em que se metera
Pegou lápis, pegou tinta, pegou cera,
E, trabalhando bonito,
Fez sobre sua testa estendida
Um aeroporto de mosquito.


16 de fevereiro de 2012

PERGUNTAS EM FORMA DE CONSIDERAÇÕES A MEU SEGUNDO FILHO

que vida é essa que te damos pequenino
num mundo pleno de ambições e desenganos
senão a vida que sonhamos
senão o amor que reinventamos
para esses tempos de tristeza e solidão?

que casa é essa que te armamos meu menino
no exíguo espaço de lares mal arrumados
senão a casa que habitamos
senão o vão que ocupamos
nesta cidade espremida por concreto e aço?

que nome é esse que te damos filho infante
desse rol de nomes tantos – nomes falsos –
senão o nome que chamamos
senão o símbolo que achamos
para nomear-te amor poesia e canto?

que roupa é essa que cosemos neste instante
com os panos com as linhas de hoje e sempre
senão a roupa que compramos
senão o hábito que criamos
para adorar-te como um pequeno deus humano?

Imagem em substantivoplural.com.br.

(Explicação necessária: Este poema é de 1980 e feito na expectativa do nascimento de Estefânia. À época, embora já possível, não quisemos saber quem estaria embutido na mãe. A emoção da hora foi muito maior.)

15 de fevereiro de 2012

TIPO ASSIM (III) - REGINALDO, O GOLEIRO

Quando Reginaldo chegou à vila de Carabuçu, no início dos anos 60, trouxe uma inusitada alegria de carioca para aqueles confins da Velha Província.
Espantava um pouco àquelas gentes a descontração do jovem beirando seus dezenove anos. Mas era de uma alegria tão franca, tão desarmada, que num instante conquistou a todos e passou a ser considerado um pouco filho de quase toda família. Das jovens moçoilas da vila passou a ser o sonho de consumo. Não havia uma que não desejasse ser a namorada do Reginaldo.
Enturmou-se com os jovens locais, sobretudo com os que jogavam bola e acabou assumindo o gol do Liberdade Esporte Clube.
Em minha memória de menino, também raspando a adolescência, jamais houve por aqueles lados, dentre os times que participavam do disputado campeonato de futebol da LBD – Liga Bonjesuense de Desportos –, goleiro tão bom, tão elástico, tão histriônico em sua posição. E olhem que eram várias as equipes que participavam do torneio, além do LEC: Olímpico e Fluminense, da sede do município de Bom Jesus do Itabapoana; Ordem e Progresso, de Bom Jesus do Norte, à época distrito de São José do Calçado; desta, eram Americano e Motorista; o Santa Isabel e o Santa Maria, das usinas de açúcar dos mesmos nomes; o Chave de Santa Maria, de um distrito de Campos fronteiro a Bom Jesus; o Boa Vista, da vizinha capixaba Apiacá. E, dentre todos os ilustres goleiros que garbosamente defendiam as metas desses clubes, não havia ninguém que suplantasse em perícia e arrojo o jovem Reginaldo.
Assistir a uma partida entre o LEC e um de seus rivais, no Estádio Doutor César Ferolla, nas tardes de domingo, passou a ser quase um compromisso religioso: todos queriam ver suas atuações, torcer por ele, admirar-se a cada defesa arrojada, a cada ponte em direção à forquilha, na defesa de uma bola que se dizia perdida. E o mais interessante de tudo: Reginaldo não era alto. Talvez tivesse em torno de um metro e setenta e cinco, se muito. E era franzino como meu tio Paulinho, seu beque-central, outro portento com a bola nos pés.
O jovem mesmo adotara a vila como sua segunda casa, pois vivia com a ajuda que alguns beneméritos do clube lhe proporcionavam, enquanto esperavam arranjar-lhe um emprego.
Numa véspera de Finados daqueles perdidos anos, Reginaldo foi com um grupo de amigos e amigas até o cemitério local para ver os preparativos para o dia seguinte. Havia lá uma cova já aberta, não se sabe para quem, em que uma jovem o empurrou, de farra. Os colegas providenciaram seu resgate e ele ainda brincou: Esta será minha.
No dia seguinte, um sábado, foram vários rapazes banhar-se no Rio Itabapoana, a cerca de seis quilômetros da vila. E Reginaldo, sem saber nadar, entrou no rio, para sair apenas sem vida, resgatado com grande esforço de meu tio Paulinho e de outros amigos que pularam n’água, na tentativa de salvá-lo.
A consternação que tomou conta de Carabuçu e se refletiu em todo o meio desportivo foi coisa jamais vista por aqueles lados. No dia do seu sepultamento, todos os times membros da Liga enviaram suas equipes, com as camisas do uniforme e suas bandeiras desfraldadas durante o cortejo, até o pequeno cemitério no alto do morro.
Foi o funeral mais grandioso e lúgubre que a vila já viu: enterrava-se ali um jovem forasteiro que a tinha adotado com o coração, como sua segunda terra. E Carabuçu perdeu seu filho adotivo mais admirado por aquele tempo. Nem na morte do Dr. Getúlio houve tanto pranto, tanto pesar!
E cada habitante da vila envergou o luto mais sincero no fundo de seu coração.

Guignard, Paisagem de Minas, 1941 (portalsaofrancisco.com.br).

14 de fevereiro de 2012

FOLHETIM DRAMÁTICO EM TRÊS ATOS LIGEIROS

ato i
me despertaste tarde eu já meio torto
raspei o lodo da cara
e sorvi-te o corpo

ato ii
me acendeste todo eu meio barroco
vesti-me de verões e oceanos
e afoguei-me nos teus encantos

ato iii
me dispensaste cedo e eu com medo
de não poder nem mais de leve
esquecer-te a palavra e a pele

Ismael Neri, Nu no cabide, c. 1927 (em commons.wikimedia.org).