11 de dezembro de 2021

POESIA

Eu 
Que de poeta nada tenho 
E nem pretenda a tanto
Assim mesmo e no entanto 
Canto meus versos 
Tento meus poemas 
Como se a poesia 
Assim tão desatenta 
Dispersa no vento
Perdida no sentimento 
Pudesse ser captada 
Por aquele que tão só e apenas 
Dela se encanta.

Imagem colhida revistaliterariamonolito.com

28 de novembro de 2021

LÁ VAI O TEMPO

Lá vai o tempo caminhando lento 
Solerte 
Dissimulado 
Sem contratempo 
Leve no seu passar 
Enquanto se amarra o cadarço 
Se dá o nó na gravata 
Se ajeita a fralda da camisa 
Como quem vai a uma festa 

Lá vai o tempo ardiloso 
Insidioso 
Serpenteando manso por nosso corpo 
Com todos os seus contratempos 
Pesado no seu passar 
Até que coloquemos o pijama 
Apertemos o cinto 
Abotoemos o paletó 
E já não vamos a festa nenhuma

Pôr do sol em Icaraí (foto do autor).


17 de novembro de 2021

O DANÇARINO

Jaé chegou agitado ao botequim onde estávamos. Camisa cor de barro claro, botões dourados – apenas a metade abotoada, deixando parte do peito à mostra –, cabelo enrolado brilhando a gel, perfume popular invasivo, que deixou o ambiente empesteado com seu cheiro, e um sorriso de cremalheira novinha. Foi saudado por boa parte dos que, àquela hora, desfrutavam dos prazeres do paladar.

- Aí, Jaé!

- Fala, Jaé!

- Tudo em cima, Jaé?

Retornou os cumprimentos de forma simpática e se dirigiu ao balcão daquele estabelecimento acanhado, simples, sem a mínima sofisticação, mas capaz de regurgitar delícias das bocas de seu fogão antigo, o que justificava a presença de tantos fregueses.

Logo pediu ao Marquinhos, proprietário do local, um copo de 51 cheio e uma latinha de Coca. O copo é do tipo americano, e a cachaça atingia a risca superior, quase palmeando a borda. Contou reinações diversas, viagem a Grussaí, bailes variados, numa dicção um tanto enrolada, parecendo segurar a dentadura, para que ela não pulasse da boca e causasse lesões nos circunstantes. A seguir, abriu a lata do refrigerante, acabou de encher o copo, apenas toldando a transparência da aguardente. Quando me virei para pegar meu copo de cerveja – eu também estava com o umbigo encostado ao balcão –, apenas percebi seu gesto de devolver o copo já vazio. Para meu espanto, ele tomou de um só sorvo, num átimo, todo aquele conteúdo da mistura que fizera. Marquinhos me olhou de soslaio, como a indagar se eu já vira algo semelhante, e, pela minha expressão, teve a certeza de que era minha primeira vez. Simples inocente eu era na arte de ingerir álcool.

Ele contou mais histórias engraçadas, enquanto bebericava golinhos de Coca. Disse que estava indo para Laranjal, em Minas, logo ali ao lado, para mais um dos bailes de fim de semana. Pediu ao dono do botequim que lhe servisse mais pinga, agora apenas a metade do copo americano. Despejou sobre a mardita o restinho de Coca, meteu a mistura para dentro com o mesmo ímpeto, sem caretas e sem muxoxos, pagou os oito reais da despesa e partiu em direção à van que o esperava na esquina junto ao posto de gasolina, já com a lotação completa. Saiu falando "já é", razão do apelido, em alto e bom som, para que todos se dessem conta de que seu destino estava selado.

- Já é! Já é!

Os que ficaram bebendo gabaram-lhe os dotes de dançarino mais do que requisitado: em vários bailes tem o acesso liberado, sem necessidade de pagar ingresso. E também o fato de já chegar calibrado aos salões, onde não gasta mais nada e consegue manter o corpo esguio com aquela malemolência que o álcool produz, até o final da função. Se Jaé não for, periga não haver dança. Nos rodopios e fricotes, como me asseveraram os parceiros de libações, Jaé é insubstituível. Mais até do que no hospital da cidade, onde exerce a nobre função de auxiliar de enfermagem, fazendo curativos com esparadrapo e gaze e removendo espinho de laranjeira do pé de menino imprudente.


Imagem colhida na Internet.


1 de novembro de 2021

A NOITE VAI SER BOA

É sábado. É dia de função.

Mal o sol começa a adormecer sua luz amarelada atrás dos morros em torno da vila, a venda do meu pai começa a receber seus habituais frequentadores. Daí a pouco a noite vai-se anunciando, e a débil iluminação pública espanta um pouco da escuridão daqui e dali, dando a todos a orientação pelas acanhadas ruas de paralelepípedo.

A venda está na esquina nobre de Carabuçu: Rua Cel. Alfredo Portugal com Rua Cel. Antônio Olímpio de Figueiredo. É uma loja pequena de três portas frontais e uma lateral, um balcão que fecha a passagem para a parte interna, acessada através de um tampo que se abre para cima, deixando aos fregueses um minguado espaço, com um banco de madeira encostado à parede, à esquerda de quem entra.

Meu pai trabalha com secos e molhados, como se convencionava chamar o comércio de gêneros de primeira necessidade para o sustento das pessoas.

Muitos desses clientes vêm para comprar os mantimentos da semana. Outros vêm pelo sabor do pé de moleque que minha mãe faz com maestria. Todos, no entanto, estão ali para a conversa solta que anima aquelas noites sem pressa do interior. Nada há de mais característico por esse tempo do que as rodas de prosa de homens afeitos à luta diária, em seus momentos de descontração.

Primeiro chega o riso franco do Azamor, acompanhado de seus irmãos. Também os irmãos Romualdo – Antônio, Tião e Zé – chegam aos poucos. Alcides Almeida, José Precisval, Dico Hilário, o ferreiro Jeremias, com suas expressões sérias num rosto que denota o cansaço da lida; as mãos moldadas à madeira do Aristides Lugão; a sabedoria esportiva do João Coleto, entre baforadas de Liberty ovais; os causos extraordinários do João Dutra; a altura descomunal do Gabriel e seus irmãos, nenhum com menos de um metro e noventa; a esperteza cigana para negócios do Ferreirinha; as transações com passarinhos do Todinho, filho do Custódio Quintal e beque de espera do Liberdade Esporte Clube. Tudo compõe aquele espaço mítico da minha infância.  

Aos poucos a venda vai ficando ainda menor, à medida que o tempo passa e os frequentadores se somam.

Meu pai não vende bebida alcoólica, porque diz não ter paciência para aturar enjoo de bêbado, fora as confusões que eles arranjam.

Aos poucos o vidro de pés de moleque começa a esvaziar, o que faz minha mãe reabastecê-lo com outro tanto daquela delícia.

A cada história do João Dutra, dá-se a multiplicação das gargalhadas. Até mesmo os mais sérios, como o Alcides Almeida e o Dico Hilário, não resistem às histórias estrambóticas muito bem contadas pelo João Dutra, o homem do relógio de bolso mais confiável do mundo.

Ferreirinha sempre tem uma oferta a fazer: ou troca, ou vende, ou compra alguma coisa: cavalo, boi, passarinho. Todos conhecem bem a sua astúcia para negócios. Só mesmo o Todinho entra na negociação de algum pássaro que lhe interesse: um curió cantador, um coleirinho do brejo brejeiro, um trinca-ferro barulhento. Pangaré, nem pensar, que Todinho bem sabe das artimanhas do amigo e se acautela para não levar uma manta de entortar a espinha dorsal.

Enquanto segue o burburinho, outros personagens entram em cena na ação da noite, todos na intenção de combinar a pescaria do domingo cedo. É o Domingos Peçanha, é o Alcino Oliveira, que já com os outros companheiros de varas e minhocas, Alcides Almeida, João Dutra e Aristides Lugão, acertam horário e discutem os melhores pesqueiros, os peixes da época e as iscas apropriadas.

Azamor, então, lembra aos amigos o caso do Saci Pererê que andava assombrando as pessoas que se dirigiam muito cedo para aqueles lados do Rio Itabapoana. Relata, inclusive, uma carreira que seu irmão ali ao lado, que não o deixa mentir, tomou daquele bicho danado, quando, ainda com o escurinho da madrugada, jogou seu anzol na curva do rio, já em terras do Jorge Assis. Todos se espantam com a narrativa, até que o Azamor, com sua gargalhada inconfundível, deixa o ambiente alegre e descontraído. Tudo fanfarronice para divertir os presentes. Contudo, convém lembrar, sempre há alguém a acreditar nessas visões noturnas, nesses bichos excomungados dos confins do mato. E é de bom resguardo ter um trabalho, um patuá, uma guia benzida para se proteger deles.

Os Romualdos, sempre falantes, direcionam a prosa no rumo das “dificulidades” no manejo de bichos de criação e na carpição de eitos de terra seca e dura, a aguardar as primeiras chuvas benfazejas. Tião, indefectivelmente, tem um palito de fósforo no canto da boca, embaixo do bigode espalhado acima do beiço, o qual fósforo trepida à medida que ele conta sua luta.

Dico Hilário e José Precisval são sempre sérios e só riem, aliás, só sorriem se a história for muito engraçada, daquelas de escangalhar o esqueleto. Caso contrário, ficam de prosa com o Alcides Almeida, primo do meu pai e homem também de poucas palavras.

Gabriel e os irmãos, do último andar de suas pessoas, bem acima dos demais, mantêm-se atentos a todas as conversas e patranhas daquele grupo animado e não economizam riso. Quase sempre acrescentam histórias hilariantes àquelas tantas já contadas durante a função.

Isso é quase uma peça teatral, sem texto prévio, sem direção de elenco, sem iluminação cenográfica. Apenas os atores fazem os improvisos que todos apreciam e transformam aquela noite em um acontecimento indelével.

Tais ações e falas ocorrem harmonicamente com a atividade do meu pai em atender o pedido desse e daquele freguês: cinco quilos de arroz, dois quilos de feijão, um quilo de farinha de mandioca, um quilo de sal grosso, um quilo de macarrão goela de pato, dois quilos de banha de porco, trezentos gramas de biscoito maria, mais dois quilos de carne-seca gorda. Ah! Ia me esquecendo, põe também duzentos gramas de bicarbonato e uma latinha de fermento em pó.

Quase nada se paga à vista. Há um borrador em que se anotam as compras de cada um. Alguns têm caderneta, para seu controle, mas o vendeiro é um homem correto e faz questão de mostrar tudo que foi anotado aos que sabem ler. Ou repete, para os que não dominam o corcoveio esquisito das letras, o rol de coisas que eles levam naquela noite. Mais dias, menos dias, eles voltam com o dinheiro para quitar o débito e deixar o nome limpo na praça.

Mais para o fim da noite, por volta das dez horas, os assuntos se vão esgotando, a tagarelice diminui, até que o último participante daquele arremedo de teatro caboclo fecha o convívio com um boa noite ou um “inté”, e o vendeiro cerra as portas do seu pequeno estabelecimento, dá a última arrumação no que ficou fora do lugar, apaga a luz e vai para os fundos da casa, onde mora com mulher e quatro filhos ainda crianças, que ouvem os últimos acordes da Lyra de Xopotó, através das ondas da Rádio Nacional.

Aquela noite foi muito boa! E a pescaria do dia seguinte promete abrandar todas as tensões da semana.


Balança de pratos antiga (imagem colhida na Internet).

25 de outubro de 2021

ANDEI OUVINDO MÚSICA

Pelo largo leito do yellow river 
Correm muddy waters 
Até la mer logo ali 
On the beach 
En el muelle de San Blás
É flood water com certeza 
Arrastando rolling stones 
Causando uma grande confusion 
Produzindo the greatest show on earth
Lá bem distante close to the edge 
Quanto se pode ver. 
Contudo se sentir uma moody blues
Ou estiver comfortably numb 
Somewhere over the rainbow 
Não se deprima 
Porque ti voglio tanto bene
Don't worry, be happy
E sobretudo smile
A vida é uma bridge over troubled waters 
E afinal de contas 
Here comes the sun 
E the show must go on 
Para que possamos dar 
Gracias a la vida.


Imagem colhida na Internet.

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Agradeço aos amigos Rogério Barbosa e Eduardo Campos as sugestões pertinentes.



9 de outubro de 2021

A LESMA

 (A partir do poema A lesma, de Jayro José Xavier.) 


Lá vai a lesma
Aquela mesma do poeta 
Leve e lenta 
Deslizando suave 
Sobre a pedra 
Deixando ao tempo 
Em que vacila na trilha 
Uma linha incerta 
De baba espessa 
Mesmo para a lesma 
A vida é tardia 
Furtiva 
Sem pressa 
Escorregadia 
Gosmenta


Imagem colhida na Internet (pixabay.com).

17 de setembro de 2021

TIPO ASSIM (VIII) - SEU VALDEMAR

Atravesso a rua de paralelepípedos e vou até a oficina do Seu Valdemar. Tenho, por essa altura, uns nove/dez anos e sou muito curioso. Gosto de conversar. Seu Valdemar, embora seja uma pessoa um pouco estranha na comunidade, por seu caráter reservado e de poucas palavras, me trata com cortesia e, se não me engano, também gosta de que eu apareça por lá, para ficar ouvindo suas histórias. A maioria são histórias bíblicas.

Sento-me no banco de madeira colado à parede direita de quem entra pela única porta, que também dá acesso ao interior da moradia, e puxo algum assunto. Enquanto ele trabalha no conserto e recuperação de sapatos, vai dizendo para mim histórias exemplares que talvez me possam influenciar na vida. Algumas vezes, porém, discorre sobre sua arte com o couro e me mostra como faz para recuperar um sapato já com marcas do uso prolongado e deixá-lo como novo. Sua sapataria recende a couro e tintas e, como sonoplastia, às vezes apresenta um concerto de marteladas abafadas sobre o couro dos sapatos que repara. Se não estou ali para essa tipo de relacionamento, não se ouve a voz dele.

Seu Valdemar, na minha visão de menino, já era um senhorzinho. Hoje imagino que ele tivesse uns sessenta anos por aquela ocasião. Era casado com Dona Tana, que me parecia tão idosa quanto ele. Os dois eram extremamente reservados, sendo mais fácil vê-los na capela de Santo Antônio nas missas do mês, nas orações semanais, nos terços e ladainhas, que ele puxava com devoção, e nas festas de coroação da imagem de Nossa Senhora, que ocorriam todo mês de maio. Batendo perna pela rua, só se fosse numa procissão. De resto, eles faziam um casal doméstico por excelência.

 A sua casa, na rua principal da vila, não era grande. De vez em quando, durante o tempo em que lá ficava a conversar, eu pedia um copo d’água e adentrava sua casa. Havia uma pequena sala ao lado da oficina, com uma pequena mesa redonda, sempre coberta com uma toalha de crochê, a acanhada cozinha contígua, que dava para um quintal pequeno e se comunicava com o quarto do casal.

O quintal, todo verde de vegetação, com poucas árvores altas e o chão de grama, tinha bem no meio uma cacimba, com um muro de proteção redondo, alto para mim, com uma roldana e um balde de madeira sobre o vão. A água de se beber, na casa, vinha dessa cacimba e era fresca e leve, sem o gosto de cloro que sentíamos na água fornecida à vila pelo serviço público. Poucas vezes, no entanto, fui até a cacimba, porque Dona Tana, que me acompanhava nessas ocasiões, temia que pudesse ocorrer algum acidente, em virtude da curiosidade característica das crianças.

Assim que bebia a água, voltava rápido à oficina, para continuar o papo interrompido – Abraão ia sacrificar seu filho, para atender a uma ordem de Deus –, e ficar admirando a habilidade dele com a sovela, a faca de sapateiro, as linhas, as tintas e as graxas. Um trabalho muito comum por essa época, dadas as condições econômicas da vila, era a recuperação da sola do sapato.

Todos os sapatos eram então de couro. Ainda não havia outros materiais como vemos hoje. Assim o uso reiterado do sapato produzia desgaste no solado, de modo que sempre apareciam furos na altura da planta dos pés. Nesses casos, estando o cabedal ainda em bom estado, era possível fazer uma meia-sola, um dos serviços mais comuns a que se dedicava.

Ele cortava com a faca, cuja lâmina era afiadíssima, até próximo ao salto, e retirava o couro furado, imediatamente substituído por outro de espessura semelhante. Em seguida costurava a meia-sola de volta no cabedal, com pontos bem apertados, produzidos com a sovela de ponta fina, e dava o acabamento com limas e lixas apropriadas. Caso precisasse também substituir o salto, retirava o antigo com uma torquês ou um alicate e o substituía por um novo, pregado à alma original com pregos de ponta fina, rebatidos com cuidado sobre a bigorna de ferro, que acomodava sobre suas pernas. Todos os reparos prontos, limpava o cabedal, passava a tinta de cor semelhante, que escovava freneticamente antes que ela secasse, a fim de a espalhar por igual sobre o couro. Em seguida, aplicava duas ou três demãos de graxa conforme a necessidade, tornava a escovar, agora com precisão e cuidado, de modo a devolver ao couro o possível esplendor que outrora tivera, e arrematava com o brilho puxado pela flanela já apropriada a isso.

Por essa altura do trabalho, o anjo de Deus já havia aparecido para Abraão e suspendido o sacrifício de Isaque, história aliás que me deixava apavorado só em pensar que um pai pudesse matar o próprio filho, mesmo em honra a Deus. Ou, mais aceitável para mim, que Simão de Cirene tenha sido constrangido pelos soldados romanos a carregar a cruz de Cristo. Quem sabe algum dia eu pudesse ser tão temente a Deus ou aceitasse carregar a cruz que me coubesse vida afora, sem reclamações e imprecações!

Seu Valdemar dava os últimos retoques naquele velho sapato, agora recuperado para uma vida mais extensa, arrumava suas ferramentas com zelo, dobrava a toalha que tinha sobre as pernas a proteger a calça e me informava que estava na hora do almoço. Dona Tana já o chamara lá de dentro da cozinha. Eu me despedia dele, com um “até mais!” ou “até logo!”– por essa época ainda não havia “tchau” em nossa linguagem – e também ia para casa almoçar.

Voltaria lá outro dia, para continuar nosso papo e admirar seu minúsculo trabalho de sapateiro numa pequenina vila do interior.

 

Van Gogh, O par de sapatos, 1886; Museu Van Gogh (wikipedia.com).


10 de setembro de 2021

COMO QUALQUER BICHO

Creio fácil no impossível 
Desconfio daquilo que é plausível 
Descreio sempre do visível. 
Ando na contramão do precipício 
Me fio no impreciso. 
Com passos lentos corro aflito 
Dentro do denso nevoeiro em que habito 
Sem procurar saída. 
Não julgo isso ou aquilo. 
Insisto apenas um pouco tímido 
No corriqueiro jeito de andar ambíguo 
E disso tiro o proveito simples 
De viver como qualquer bicho.



Foto do autor.

11 de agosto de 2021

QUANDO EU MORRER (III)


Quando eu morrer
Não mandem flores
Não acendam velas
Não chorem nem se condoam
Terei vivido meu tempo
Terei sido feliz
Terei aproveitado cada pôr do sol
Como se fosse o único
Terei amado as pessoas
A mulher os filhos os netos os amigos
Como se fossem únicos
Terei lido bons livros
Ouvido boa música
Bebido boas bebidas

Quando eu morrer
Não toquem sinos
Toquem música barroca
Toquem rock progressivo
Toquem samba
Ou um chorinho dolente

Caravaggio. Tocador de alaúde; 1596 (em wikiart.org.pt).



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* Tocata e fuga em ré menor, de Johann Sebastian Bach;
** Epitaph, com o King Crimson;
*** Preciso me encontrar, de Candeia, na interpretação de Cartola;
**** Pedacinhos do céu, de e com Waldir Azevedo.

21 de julho de 2021

VIAGEM POR NUESTRA AMÉRICA

Amigos leitores, 

incentivado pela amiga Imara Reis, registrei as memórias da viagem que eu, minha mulher e meus amigos Eduardo Pacheco de Campos, Rogério Andrade Barbosa e Mara, empreendemos pelo Cone Sul da América, em janeiro de 1976.

Agora o texto, com o título Viagem por nuestra América, foi lançado pelo Clube de Leitores, onde também já publiquei meus outros livros (Asfalto&mato, contos; Itinerário para quem chega a Liberdade, poemas; e Pensamentos bem-pensados, frases).

Caso tenham interesse em adquiri-lo sob a forma impressa ou virtual (e-book), é só clicar na imagem da capa, para ser direcionado ao sítio da editora.

Antecipadamente, agradeço seu interesse.



30 de junho de 2021

A LOIRA DO ÔNIBUS

 

Lúcio já estava no ônibus, quando entra uma nova passageira e se acomoda ao seu lado no banco. Era uma loira descomunal, como avaliou mentalmente, assim que a olhou de soslaio. Ela, simpática, deu-lhe bom dia e pediu licença para acomodar toda a sua pessoa ao lado do psicologicamente boquiaberto Lúcio – na verdade, ele não teve a coragem de abrir a boca e ficar com cara de bobo.

A partir daí, a cabeça de Lúcio entrou em parafuso, num alvoroço de pensamentos como numa brain storm de que estava acostumado a participar na agência de publicidade onde trabalhava.

Como uma loira daquele porte, daquela envergadura, daquela compleição física soberba – e que cabelos! -, poderia andar no prosaico transporte público e dividir o banco com um reles mortal, que sinceramente nem tinha onde cair morto? Não haveria nenhum ser humano, proprietário de uma Lamborghini, de uma Ferrari ou de uma Maseratti, de uma – vá lá que seja – Alfa Romeo, disposto a transportá-la para baixo e para cima? Para onde a loira quisesse ir, sem pestanejar, sem indagar dos motivos? Como esse mundo é desajustado, continuou ele em suas caraminholas. Por muito menos ela estaria em páginas de revistas masculinas, daquelas antigas, fazendo o delírio da galera. Ou, caso seja recatada, num editorial de moda, ou num comercial de produtos de beleza. E não! Estava tão somente ao seu lado no ônibus.

Ele só não reparara, tão logo ela entrou, se o pagamento fora em dinheiro ou num reles cartão de bilhete único. Com certeza aquela loira não merecia possuir um prosaico cartão de transporte público. Aliás nem deveria pagar passagem. Muito ao contrário! A empresa concessionária deveria pagar para que ela viajasse em seus ônibus e, então, fazer propaganda com ela, sorridente, segurando o cartão a convidar os demais comuns dos mortais a utilizarem aquele mesmo ônibus.

Lúcio pensou em lhe dar seu cartão de visitas e convidá-la a ir fazer um teste na agência onde trabalhava. Aquela loira era um material humano a não ser desperdiçado, em hipótese nenhuma. E, vá lá, haveria a possibilidade de vê-la outras vezes e, quem sabe, até desenvolver uma amizade, seguida de uma afeição e de um louco amor. Tudo é possível na vida, imaginou com exagerada autocomplacência. Até mesmo o impossível!

A loira, sem se dar conta de todo o frisson causado no cavalheiro ao lado, abriu sua bolsa de onde tirou o celular, acessou uma rede social – de rabo de olho, ele verificou se tratar do WhatsApp – e começou a digitar freneticamente. A cada mensagem de volta, seu olhar se iluminava mais e um leve sorriso começava a emoldurar seu rosto já por demais perfeito. Lúcio estava atento aos mínimos movimentos da moça, sem que virasse a cabeça. Apenas seus olhos flutuavam de um lado para o outro, a fim de tentar saber mais alguma coisa da loira.

O ônibus já havia passado por dois pontos, em que alguns passageiros desceram e outros subiram. O próximo ponto, diante da pracinha onde se localizava o prédio da agência, seria seu local de descida. Ele, porém, estava tentado a seguir na viagem até onde a loira ficasse. Desceria um ponto depois dela e voltaria. Aquela era uma oportunidade única de viajar com pessoa tão bonita ao seu lado. Jamais tivera tal sensação. E ainda haveria a possibilidade de que, durante o trajeto, ela se dignasse a lhe perguntar as horas ou fazer algum comentário bobinho sobre o tempo, ou uma consideração mais séria acerca do aquecimento global. Não haveria problema nenhum, caso chegasse alguns minutos atrasados naquele dia.

Antes que ele acionasse o pedido de parada, a loira apertou seu mimoso dedo indicador, decorado por esmalte de cor chamativa, sobre o botão colocado na coluna ao lado do banco. Milagre, pensou ele. Ela desceria no mesmo ponto, diante da pracinha.

Por uma questão de cavalheirismo – e, inconfessavelmente, para apreciar a pessoa da loira em toda a sua exuberância pela retaguarda –, seguiu atrás dela pelo corredor do veículo, mal conseguindo disfarçar para os demais passageiros, que se viravam para olhar a loira, a admiração estampada na cara.

Com cuidado e elegância sensual, a loira desce os degraus, segurando-se na coluna para não forçar a saia justa, enquanto ele aguarda sua vez. Sem pressa, porém sôfrego, o ‘coração em desalinho’ como na canção, segue atrás dela, em procissão. A loira caminha em direção à rua lateral da pracinha, também para onde ele vai. Seu coração trepida como tamborim em ensaio de escola de samba, com instantes de surdo de marcação. E imagina a possibilidade de que ela também vá até a agência de publicidade.

Sem tirar os olhos dela, a alguns passos à sua frente – ele faz questão de retardar a marcha –, não percebe, parada na lateral da rua, quase diante do prédio onde trabalha, uma Ferrari vermelha, conversível, com um motorista bem-vestido, de óculos escuros e cabelos em elegante desalinho, como um modelo em peças publicitárias.

Ao se aproximar do carro, a loira faz um cumprimento jovial ao motorista, contorna o bólido, entra pela porta, que o homem abre desde seu assento, e se acomoda no banco de couro com o símbolo daquela máquina infernal. Dá um selinho naquele miserável, passa o cinto de segurança sobre seu peito deslumbrante, no instante em que, o motor já acionado, o desgraçado dá a partida no carro, acessa a avenida principal e some na descida da rua após o semáforo, deixando o coração do pobre diabo do Lúcio em frangalhos, desmontado como um velho carburador cheio de problemas.

Vida desgraçada, pensou ele. Agora vou subir e terminar aquele maldito encarte de supermercado com promoção de produtos de higiene e limpeza.


Foto obtida na Internet.


20 de junho de 2021

O CONTO

Ele queria escrever o conto perfeito, definitivo.

Depois de ter uma inspiração vinda não se sabe de onde, vai até o computador e começa a digitar com certo frenesi. As frases iam saindo fáceis, organizando-se em parágrafos bem-estruturados e coerentes. O tema não tinha tanta importância, desde que seu desenvolvimento tivesse nítida linha organizacional e perfeita expressão linguística. Mas, também, quem se importa com história? Há uma infinidade de contos rodando por aí que não chegam a lugar nenhum. Circulam em torno de lucubrações mentais e ganham elogios, e até prêmios.

E continuou a desenvolver o assunto que se lhe apresentara.

De repente parou após o terceiro parágrafo, sem vislumbrar o caminho a seguir. Todo conto é mais ou menos assim, pensou ele. Às vezes ele se impõe ao contista. Diferentemente do que se imagina, o contista não tem a liberdade total de escolher os caminhos da trama. Depois de iniciado, parece que o conto ganha vida própria. O criador não é propriamente o demiurgo plenipotenciário de sua criação e condução. Antes, ela vai propondo vias, atalhos, pontilhões, pinguelas – algumas vezes, até mata-burros -, quase sempre guiando o dedilhar do teclado em direções inéditas para o autor. Assemelha-se a um carro velho descendo estrada de barro à beira de precipícios, sem direção hidráulica e sem freio. Assim, todo cuidado é pouco.

O autor, então, se levanta, vai até a cozinha tomar um copo d’água, um gole de café, a ver se a inspiração original retoma as rédeas – ou a direção – da escrita.

Em pouco tempo, volta ao frenesi inicial de digitação, escolhendo um dos atalhos possíveis, de modo a culminar num desfecho inesperado, a fim de que o leitor, ao final da leitura, extasiado, solte um oh! da garganta. Ou do pensamento! Então ele estará recompensado esteticamente. Conseguira atingir seu objetivo.

O trabalho iniciado chegara a bom termo. Assim se fazia a hora de ler o texto com atenção, revisar tudo, para que nada frustrasse sua expectativa. Olhou com atenção todas as vírgulas, trocou algumas; alterou a posição de termos; antecipou adjuntos em duas ou três frases; revisou regências de cunho popular por outras da forma culta; substituiu a voz passiva locucional pela pronominal, a fim de dar leveza e sofisticação ao texto; e, sobretudo, caprichou na escolha do vocabulário, com o cuidado para não cair no hermetismo de Os sertões ou A carne, mas também não flertar com uns e outros aí que se deixam levar pela linguagem chula e descuidada dos dias atuais.

Então resolveu salvar o texto, desligar o computador e ir dormir. No outro dia, faria a revisão da revisão, já que erros são insidiosos e escapam ao olhar do autor, mais preocupado com o conteúdo do que com a forma.

Dormiu acossado por pesadelos em que gramáticas e dicionários lhe eram atirados sobre a cabeça, ao entrar numa biblioteca soturna, mal iluminada e dirigida por um bibliotecário corcunda, como a personagem de Victor Hugo, o grande contador de histórias da França.

Acordou no meio da noite sobressaltado!

Sem conseguir retomar o sono, resolveu voltar ao computador para mais uma olhadela, sem grandes preocupações, no que escrevera. Sentia-se ainda um pouco ensonado para promover qualquer alteração que pudesse melhorar o que já estava bom, segundo seu juízo.

Mas ainda encontrou alguns pequenos porblemas de digitação, que resolveu sem problemas; acrescentou a marca de plural que faltou em duas palavra, palavras essas, aliás, de caráter culto, praticamente ignotas dos leitores comezinhos. E, principalmente, experimentou pequeno gozo ao se imaginar na linha de um Machado, em seus Contos fluminenses, ou de um moderno como Trevisan, com suas tramas soturnas de Cemitérios de elefantas e suas frases decupadas como um Super 8.

E recuperou o sono, que levou sem mais transtornos até as oito da manhã, quando foi acordado pela mulher para o desjejum.

Daí a meia hora, foi para a varanda tomar um banho de sol de inverno, preocupado com as taxas de vitamina D, após o que retornou ao conto, para mais uma e definitiva revisão.

Tudo certo e revisado, faltava agora o título. Que nome atribuir a um conto sem uma história consistente que o sugerisse de pronto? Pensou, pensou, refletiu bem e não encontrou título adequado. Resolve, então, chamar-lhe simplesmente O conto.

E deu a tarefa por finda. Agora era só publicar.

Imagem em pt.coolclips.com

8 de junho de 2021

SANSÃO E SEU ANTÔNIO

Seu Antônio vivia sombrio por causa das perspectivas do passado. É isso mesmo. As perspectivas do Seu Antônio se viam pelo retrovisor da vida e não pela janela de vidro sobre a ondulação das montanhas ou o plano pacífico das campinas extensas. Ele ficou assim, depois que lhe morreu Sansão, seu galo de estimação, um shamo japonês de pernas compridas e penas curtas, uma maçaroca de músculo no peito e um olhar matador. Quando seu galo entrava na rinha, isso antes que o abestado Jânio Quadros proibisse as brigas, o galo adversário entregava os pontos e fazia jeitos de galinha choca. Às vezes nem era preciso soltar um pau mortal de suas pernas poderosas. E quantas lutas venceu por WO, apenas porque o dono do adversário descobria que o opositor seria o Sansão.

Então já lá se vão algumas décadas que Seu Antônio vive de suspiros lúgubres por um passado remoto que permanece insistente na soleira de suas memórias. E nem adiantava Dona Carmô, como ele chamava a mulher, preparar angu molinho, com costelinha de porco cozida com quiabo, mais taioba refogada, uma talagada de pinga da boa e pimenta brava, para alegrar seus dias de tristeza e sensaboria.

Sansão fora para a aposentadoria compulsória, por conta da decisão de Brasília no início dos 60, e aos poucos, sem adversários a enfrentar, sem treinamentos a fazer, foi definhando, definhando, como se tomado de depressão, até não servir nem para ensopado de galo com macarrão, apesar do tratamento de sultão que Seu Antônio lhe dispensava.

Pois foi, em certa manhã de agosto, que um frio nebuloso entrando pelas gretas do galinheiro encontrou o velho galo de briga inerte no chão, sob o poleiro principal onde reinara poderoso por vários anos. A vida, a brabeza, o mau humor, a peçonha no olhar o tinham abandonado naquela madrugada, deixando-lhe apenas o corpo definhado com as penas já escassas a lembrar de forma tênue a velha glória de campeão das rinhas.

A notícia foi uma devastação na vida de Seu Antônio. A mulher, ao lhe passar a novidade trazida pela Ceição, sua ajudante nas tarefas domésticas, providenciou um copo d’água fresquinho para lhe amortecer as trepidações do coração. Seu Antônio bambeou o corpo, escureceu a vista por uns segundos e soltou um longo suspiro, deixando-se cair em abandono sobre a cadeira de balanço ao lado da janela. Olhou na parede a foto de Sansão nos áureos tempos, no meio do tambor, o centro do ringue, com o opositor nocauteado a seus pés, uma foto que saíra na primeira página d’A Voz do Povo. Não era homem de chorar, mas não conseguiu reter uma lágrima teimosa que lhe brotou no cantinho do olho esquerdo, aquele mesmo que piscava para o Sansão, no momento de liberar seu golpe mais fulminante.

Passado o choque inicial, Seu Antônio pediu à mulher que lhe arranjasse roupa de sair, pois iria providenciar enterro condigno para seu amigo penoso. E retrucou com visível aborrecimento à proposta que ela lhe fizera, para que enterrassem Sansão aos pés da mangueira frondosa, lá no fundo do quintal.

- Sansão gostava tanto daquela mangueira, Tonho!

- De jeito maneira, Carmô! Sansão, pelo seu passado, merece enterro de pompa.

E não houve jeito de demovê-lo do propósito de ir até o serviço funerário da cidade, explicar sua intenção, rasgando elogios ao amigo defunto, de tal modo convincente, que o agente funerário lhe prometeu ir até a prefeitura, a fim de obter autorização para enterrar o galo no campo santo local.

- Seu Vicente da Funerária, lhe dou prazo de duas horas para resolver a questão! Vou estar em casa aguardando suas notícias.

Vicente, dono da Funerária Ascenção, localizada próxima ao hospital da cidade, pegou o carro e foi de imediato até a prefeitura.

Como em cidades pequenas do interior todos se conhecem, não foi difícil a Vicente convencer o encarregado de sepultamentos a concessão de um pequeno espaço para o corpo de um galo de estimação, considerado pessoa da família do Seu Antônio Apolinário.

- É melhor não desagradar o velho. – disse o funcionário, ao aquiescer à proposta do papa-defuntos.

Com a autorização conseguida, Vicente providenciou um caixão apropriado ao extinto, o qual mandou fazer com a devida urgência, aproveitando para também incluí-lo no catálogo da funerária. Vai que outro maluco queira enterrar seu bicho de estimação, com honras humanas, pensou o prestador de serviços fúnebres.

Seu Antônio mandou convocar o neto, para dirigir seu carro, e partiram, além dos dois, Ceição e Dona Carmô. O carro da Funerária Ascenção seguia à frente levando o ataúde acanhado, enfeitado com cores sóbrias – afinal Sansão não gostava de frufrus e balangandãs. O minúsculo cortejo seguiu pela Rua Aristides Figueiredo, até chegar ao cemitério. Lá no fundo do espaço, sob a sombra de uma paineira, Vicente mandou cavar uma pequena sepultura em que o galo foi enterrado, sob o olhar doloroso da família e um pequeno discurso do Seu Antônio, em que lembrou os feitos da vida do galináceo falecido.

No aniversário de morte, foi inaugurado sobre a sepultura o túmulo de mármore que o velho aficionado em brigas de galo mandou construir para seu amigo de penas.

Desde então, Seu Antônio só tem retrospectivas e não mais perspectivas. Seus olhos miram o retrovisor da vida. O que se apresenta radiante e colorido à sua frente, ele já não mais enxerga. 

Galo shamo (foto obtida na Internet).


29 de maio de 2021

DEUS ME LIVRE

 

Deus me livre das falcatruas

Dos bichos de pé

Das blenorragias

Dos políticos de todas as tendências

E das ideologias.

Deus me livre dos coriscos

Dos aguaceiros violentos

Dos pés de vento

E das promessas ariscas

Dos tempos de eleição.

Deus me livre dos futuros

Dos vírus e das bactérias

Que se anunciam

Em forma de previsão

E da queda de viadutos

Prontos ou em construção.

Deus me livre dos dias

Cheios de bons augúrios

Que morreram inócuos no passado.

Se puder

Deus

Salve o meu presente

O nosso presente

E já ficarei muito grato.



Lua Crescente sob nuvens (foto do autor).

30 de abril de 2021

MINHA MÃE

(À minha mãe, por seus 95 anos, que se completam hoje.)

Eu tenho minha mãe nas mãos 
no peito 
na pele
nas veias
e no coração. 
Por onde quer que eu procure 
do mais exposto ao mais recôndito 
do que sou 
desde que sou bicho humano 
encontro minha mãe. 
E nisso não há estorvo 
nem contratempo. 
Minha mãe sou eu 
numa versão um pouco piorada. 
Mas ela não tem culpa de nada!

Minha mãe, fotografada por mim.

16 de abril de 2021

HISTÓRIA DE UM CARNAVAL

 - Pegue seus panos de bunda e ponha-se daqui pra fora!

A mulher chegara ao seu limite. E quando assim se expressa é porque o caldo havia entornado definitivamente.

Ele tinha saído no sábado, antes do almoço, vestido de índio: saiote de penas falsas sobre a sunga preta, cocar de tosca feitura e as armas fingidas nas mãos: uma machadinha de madeira e um pequeno arco com sua flechinha de bambu. Completavam a caracterização umas tiras de esparadrapo à guisa de pintura tribal. O objetivo era participar da abertura do Carnaval de Niterói, tradicionalmente feita pelo bloco Filhos da Pauta, criado pelo pessoal da Imprensa da antiga capital do Estado do Rio de Janeiro. Exatamente ao meio-dia do sábado, após concentração na Praça da República, os foliões percorriam, ainda com parte do comércio aberta, a Avenida Amaral Peixoto, em direção à estação das barcas, na Praça Arariboia. Após o desfile, tudo terminava em libações alcoólicas de varar relógios e romper chão, de não sair jornal no dia seguinte.

Ele não percorreria mil metros, entre sua casa, na confluência da Mister Cunditt com a Padre Anchieta, e a concentração, marcada para as onze horas em ponto. No Brasil, Carnaval é o único evento que obedece rigorosamente ao horário e para o qual não há defecção: ninguém se atrasa, ninguém falta. Contudo, a trabalhar contra todos os seus planos, uma profusão de botequins pontuava o trajeto entre os dois pontos. E, na empolgação da folia anunciada, ele foi calibrando, em cada um deles, seu esqueleto fantasiado.

Aqui e ali encontrava foliões que salpicavam as calçadas e a Praça do Rink. Os dois bares em diagonal na esquina da Quinze de Novembro com Andrade Neves regurgitavam de fregueses, todos com o espírito momesco saindo pelos poros, bem como algumas emanações de álcool. Ele parou no primeiro, à esquerda da esquina, porque reconheceu no arlequim tristonho seu vizinho do andar debaixo. Chegou eufórico, saltitante, mas foi recebido sem entusiasmo: o vizinho enchia a cara porque estava realmente triste. Aquilo não era uma fantasia de Carnaval, mas um disfarce para sua dor de amor: a namorada lhe dera um perdido, três dias antes, e se mandara para Cabo Frio, com a mala cheia de miçangas, paetês e más intenções, fora a bolsa repleta de maquiagem, os biquínis, cada um menor que o outro, e duas ampolas de lança-perfume argentino compradas a um muambeiro conhecido, que ele mesmo lhe apresentara. Diante daquele quadro, não teve dúvidas, pediu que o garçom lhe servisse um conhaque Dreher e um chope, para compartilhar o sofrimento do amigo. Brindaram, ele ouviu as lamúrias do cara, não soube dar conselhos ou orientações, mas se dispôs a beber com ele, como se bebessem a um morto ilustre. Veio mais um conhaque, com algumas viradas de chope, enquanto o amigo amaciava a dor a poder de steinhaeger versus cerveja preta, uma combinação improvável, de consequências imprevisíveis.

Algum tempo depois, após se despedir do vizinho, atravessou em diagonal a esquina e aportou no outro bar, onde encontrou o Tucano, fantasiado de índio pataxó, que com ele combinara sair no Filhos da Pauta, em homenagem a Arariboia. Iriam honrar a memória do índio temiminó que ajudara os portugueses a expulsar os franceses do Rio de Janeiro há centenas de anos. Não fosse esse heroísmo do índio, hoje não haveria Carnaval no país. Talvez todos estivessem dançando um minueto.

Tucano, ao vê-lo atravessar a esquina, já providenciara mais um copo e lhe serviu uma cerveja estupidamente gelada, que seria acompanhada com lances de genebra e lascas de testículos de boi empanados, de modo a forrar o estômago e prepará-los para as refregas anunciadas. Do lado de fora do bar, na calçada da Quinze de Novembro, um grupo cantava sambas de antigos carnavais, com acompanhamento competente de instrumentos de percussão. O ambiente convidava. E eles acabaram ficando ali por bom tempo. Até que decidiram partir em direção ao ponto inicial do desfile, aonde chegariam em menos de quinze minutos, não fosse ter encontrado no bar da esquina das ruas Doutor Bormann e José Clemente seu velho amigo e conterrâneo Ferreirinha, frequentador assíduo do lugar.

Ferreirinha era um tipo sistemático, desses de antigamente, cheio de liturgias, que só bebia em pé, umbigo encostado ao balcão, junto à porta que dá para a José Clemente, lugar estratégico para bater a cinza do cigarro queimado com frequência. Era comum vê-lo ali sempre aos sábados, das onze às quatorze horas, como se fosse um compromisso a que não pudesse faltar, mesmo se chovesse canivete. É que Ferreirinha morava num apartamento acima do bar, postado no térreo de seu prédio. Ferreirinha estava sempre vestido como se fosse trabalhar: calça de linho, camisa de cambraia de cor única, sapatos lustrados, cabelo sustentado a poder de creme de pentear, novidade que substituiu a velha brilhantina, e barba bem escanhoada. No Carnaval, contudo, se permitia alguma alegoria: uma camisa riscada e um chapéu de palhinha branca, com fita azul da cor da Portela, sua escola do coração. E mais nada! Nem ruído carnavalesco Ferreirinha produzia: parecia uma imagem de televisor sem som.

Os dois fantasiados atravessaram a rua para falar com Ferreirinha. Tucano não o conhecia até então, momento em que foi apresentado e teve ciência de uma breve biografia do portelense discreto passada pelo amigo, com tantas e tais peripécias inusitadas, que Tucano não pôde acreditar, já que ações e ator pareciam não se coadunar, não fazer par. Ferreirinha, bonachão, sorriu um tanto amarelo e ofereceu cerveja aos dois. Eles, embora já atrasados, não podiam fazer desfeita ao amigo e esticaram as goelas e as conversas, fisgaram moelas e fígados de galinha, lembraram outras tantas trapalhadas de adolescência e juventude na Miracema saudosa e deram boas gargalhadas com o Ferreirinha. O entusiasmo aumentou, e resolveram adereçar a cerveja com bicadas de Fogo Paulista, porque o Carnaval prometia. Tudo pelo Rei Momo!

É preciso não se perder no périplo dos dois. Este narrador está atento, porque o desfecho da história compensa o sacrifício.

Assim que deram por fechada a conta e passada a régua com o amigo sistemático, os foliões prometeram-se solenemente seguir direto para a concentração, sem mais delongas. Para a concentração, não, porque àquela altura o bloco já estaria chegando às imediações da Galeria Gold Star, na metade da passarela, bem defronte à Caixa Econômica. Melhor, então, que adentrassem a galeria pela Rua da Conceição, para já sair direto em pleno desfile apoteótico da turba resoluta, que não estava nem aí para o sol escaldante daquele sábado de verão.

Foi entrarem no corredor da esquerda e perceberem o som da bateria lá longe. Tucano ponderou que o bloco ainda deveria estar no esquenta na concentração, o que lhes dava ainda tempo de tomar outra num dos dois botequins internos, sugestão que ele achou bastante atinada, de modo que foram encostar-se ao balcão do bar. Desceram dois chopes com colarinho, e mais dois, e outros dois. O som da bateria foi ficando cada vez mais fraco, mais distante, menos perceptível. No quarto ou quinto chope, já não ouviam mais nada e resolveram, então, dirigir-se à Praça da República, porque imaginaram tratar-se da preparação para o início triunfante do desfile. Nessas ocasiões, sempre se faz um silêncio respeitoso, alguns até com orações, pedidos aos orixás, antes do primeiro ronco da cuíca.

Como os dois já não estivessem deliberando em seu juízo perfeito, não perceberam que o bloco já passara, já tinha chegado à Praça Arariboia e se dispersara ao fim da gloriosa abertura do Carnaval da cidade. Na praça da concentração, indagaram de uns e outros que por ali restavam e souberam que o bloco saíra exatamente ao meio-dia, como programado, e que, àquela altura, já depois das quinze horas, eles só encontrariam alguma fuzarca na Avenida Visconde do Rio Branco, para onde o desfile embicou.

Saíram, assim, os foliões retardatários na direção indicada, cortando caminho por entre ruas paralelas à Avenida Amaral Peixoto, atravessando o Jardim São João, de modo a pegar o refugo do bloco na altura da Marechal Deodoro.

E já não acharam mais nada. Os foliões se dispersaram pelos bares da redondeza, uns aqui, outros ali; alguns com seus instrumentos; outros levando alegorias de mão; todos suados, esfalfados, necessitados de repor líquido antes que se desidratassem. Os de maior poder aquisitivo foram para o Caneco Gelado, na Marquês de Caxias; outros, para os bares e restaurantes do Mercado São Pedro; e todo o resto se espalhou pela infinidade de bares, botequins e biroscas das redondezas.

Os dois amigos não se deram por vencidos e resolveram esticar o desfile frustrado na mesma batida dos demais foliões. E saíram de botequim em botequim, de bar em bar, pelo resto da tarde, princípio da noite, alta noite, madrugada funda, cantando “Mamãe eu quero”, “Você pensa que cachaça é água”, “As águas vão rolar”, e por aí afora.

Neste ponto, o narrador não conseguiu mais ser testemunha do que se passou. Só mesmo na manhã da Terça-feira Gorda, três dias após, é que flagrou a chegada daquele um a casa, todo estropiado, recendendo a álcool, com a machadinha e o arco e flecha desconjuntados à mão, cumprimentado a mulher, como se voltasse do trabalho, trazendo sua maleta 007 na mão. E ouviu em alto e bom som, para que não se fizesse de desentendido, a frase fatídica:

- Pegue seus panos de bunda e ponha-se daqui pra fora!

E não houve argumento, explicação, pedido de desculpas que a demovessem da sentença proferida. A casa era dela, a mobília era dela, as contas ela pagava; e ele era apenas o traste que ela imaginara servir de parceiro. Ele, então, pediu que pelo menos pudesse tomar um banho, escovar os dentes, fazer a trouxa e sair. Ela, magnânima, consentiu, informando que iria ao apartamento da amiga logo abaixo do seu, ficaria lá por cerca de meia hora e, ao voltar, não queria mais vê-lo.

Ele cumpriu seu ritual, pôs as roupas numa mala velha de outros carnavais e saiu deixando a porta encostada.

À noite, a mulher foi para o baile de encerramento do Carnaval de Niterói no Clube Canto do Rio, acompanhada da vizinha do andar de baixo, e cantou a plenos pulmões a liberdade que Momo lhe proporcionava:

“Este ano não vai ser
igual àquele que passou
Eu não brinquei
Você também não brincou”.*

 

                                            Imagem colhida na Internet.

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*Até quarta-feira, de Humberto Silva e Pedro Sette.

1 de abril de 2021

ETERNIDADE?

Quando o sol bater à tua porta
Anunciando a noite que virá
Não te desassossegues nem te entregues
É apenas a vida cumprindo seu fado
Inapelável e ininterrupto
Como tem sido desde que o mundo é mundo.
Pega as coisas que não te pesem
Tua história teus amores teus sonhos
E te prepara para atravessar o Estige antigo
Com o barqueiro soturno que lá está.
Se levares a moeda em tua boca
Pode ser que do outro lado esteja a Eternidade.


Gustave Doré (séc. XIX), A barca de Caronte (para a Divina comédia; colhida em flickr.com). 

22 de março de 2021

DIÁLOGO PLAUSÍVEL

 O cara, espécie de secretário particular, faz anotações sobre os desejos finais do Seu Leocádio.

- O senhor vai querer ser enterrado ou cremado?

- Não sei. É preciso responder agora? Depois, querer é um verbo muito forte nesta pergunta.

- É apenas para orientar a família sobre as providências a tomar depois de tudo.

- Isso ainda não decidi. Vou pensar hoje à noite. Amanhã te respondo.

- O senhor vai querer banda de música acompanhando o féretro?

- Ah! Isso vou querer! Vai me fazer voltar à infância, quando ouvia a Furiosa. E anote aí: tocando Saudades de Matão.

- Mas, Seu Leocádio, aí o senhor estará morto: não terá como voltar à infância. Além disso, se for cremado, não haverá féretro. Portanto não haverá banda e muito menos Saudades de Matão!

Seu Leocádio pensa, pensa, passa a mão pelo queixo, como sempre faz diante de resoluções intrincadas, e diz:

- Isso pode esperar para quando eu decidir se quero virar cinzas ou ser comido pelos vermes, não pode?

- Pode, mas é que as anotações acabam não acontecendo. E flores? E igreja? E elogio fúnebre do padre Eustáquio? Isso tudo o senhor tem de decidir. Por exemplo, aquele bibelô que o senhor trouxe de Paris, quando lá esteve pela primeira vez, de quem será? Tenho de anotar isso aqui também.

- Faça uma pergunta de cada vez, senão me atrapalho. Mas o bibelô se quebrou há muito tempo.

- Ele foi restaurado naquela loja de antiguidades. Não se lembra?

- É verdade! Tinha me esquecido disso. E onde ele está agora então?

- Bem aí atrás do senhor, na estante de livros. O Camões está escorado por ele.

- Camões?! Aquela edição histórica d’Os Lusíadas que encontrei num sebo em Coimbra?!

- Sim, essa mesma! E o senhor tem de pensar para quem deixar seus livros também. Sua neta Marietinha é muito estudiosa. Acho que ela vai ficar muito grata, se o senhor lhe deixar seus livros.

- Boa lembrança! Mas a Marietinha não está morando na Finlândia? Não foi para lá atrás daquele finlandês maluco, com o nome cheio de letras dobradas e que vive correndo maratonas mundo afora?

- Sim, ela mesma. Ele é o Eerikki, o marido dela. Mas a gente dá um jeito de fazer os livros chegarem lá. Ou ela vem aqui para o seu velório e aproveita para levá-los na volta.

- É verdade! Pode ser. Mas eu queria pensar melhor. Eu poderia doá-los à biblioteca da minha velha escola primária lá na minha terra. Tenho de pensar melhor sobre isso. O que mais você perguntou?

- Sobre o elogio do padre Eustáquio?

- Padre Eustáquio... Padre Eustáquio... É melhor, não. Padre Eustáquio andou falando mal de um amigo nosso que morreu ano passado. Não quero que ele use seus conhecimentos da minha vida, para me desabonar na hora final. São coisas antigas, mas que podem voltar na hora. Não vou querer isso.

- Ele não fará isso, Seu Leocádio. Com certeza! O senhor é amigo dele, desde o movimento pela emancipação da cidade. Se lembra?

- Sim, certamente! Mas é melhor, não. Deixe o padre Eustáquio fora disso.

- E a igreja?

- Como igreja?! Vou ter de passar pela igreja antes de ser enterrado? Eu quase nunca vou à igreja. Poucas vezes, para não dizer que não vou.

- O senhor é quem decide. Sua família talvez goste. É um conforto espiritual para os que ficam.

- É melhor pensar direito. Pensando bem, se eu passar por lá, o Padre Eustáquio poderá fazer a oração fúnebre. Uma boa recomendação final pode abrir portas. Nunca se sabe. E ele é meu amigo.

- Então... É o que eu falava, seu Leocádio.

- Vou pensar melhor sobre isso também.

- Seu Leocádio, está ficando tudo para depois. O senhor ainda não decidiu nada.

- Nem decidi morrer ainda! Você não acha que está sendo precipitado demais? Tudo pode esperar.

Naquela noite, Seu Leocádio se recolheu por volta das vinte e duas horas, após ter tomado uma sopinha de batata-baroa rala, com pouco sal, e migas de pão, que a mulher chamava de consomê, e não se levantou mais. Sem resolver nada sobre seu funeral, deitado ficou para o resto da eternidade. Ou até que virasse cinzas, ou os vermes o comessem. Nunca se saberá.


Gustave Caillebotte, Retrato de homem escrevendo em seu escritório, 1835 (imagem colhida em wikiart.org).