31 de outubro de 2010

VINHO TINTO



traga-me, amor
seu líquido precioso
onde se revelarão meus desejos de corpo.
emborque seu cálice em minha boca
para que lhe sorva a espuma da paixão
e deixe que o espírito do vinho
penetre-nos a carne
que consumiremos
até o último gozo.

30 de outubro de 2010

GRAVE ESPECTRO DA MORTE

pesadas medidas e contadas nossas dores cotidianas
sobramos nós
                        sós
profusa solidão de seres       
                                                           povo

dosadas balanceadas e racionadas nossas alegrias incertas
sobram eles
                     neles
                              deles
                                      por eles
minúscula reunião de homens
                                               grave espectro
                                                         da morte
Pieter Brueghel, O triunfo da morte, séc. XVI.

29 de outubro de 2010

EU QUERO UM TRABALHO FÁCIL!

Tripalium (Eh, vidinha difícil!)



Embora todos saibamos que “o trabalho dignifica o homem”, o que é uma verdade verdadeira, nem sempre o homem digno trabalhou. Pelo menos com a acepção da palavra trabalho como temos modernamente. A casta de nobres romanos não trabalhava. Trabalhar era coisa de escravos e da classe baixa da população.
Na verdade, a palavra trabalho da língua portuguesa tem no seu étimo, na sua raiz mais remota, o termo latino tripalium (literalmente “três paus”), que nomeava uma espécie de instrumento de tortura aplicada a escravos e infratores da Lex romana. De tripalium saiu o verbo tripaliare, fonte do nosso trabalhar. Os verbos latinos que tinham o sentido de “trabalhar” eram operare (port., obrar) e lavorare (port., laborar, lavrar).
Vê-se, por aí, que a atividade laborativa, em nossa língua, assim como em francês (travailler), espanhol (trabajar), catalão (treballar), galego (traballar), não é bem recomendada, diga-se, etimologicamente. Em francês, inclusive, o verbo também tem o sentido de “atormentar”, como na frase “Cette idée me travaille depuis quelque temps.” (Esta ideia me atormenta há algum tempo), acepção, aliás, em desuso em português. Já em italiano, a palavra correspondente é lavorare.
Não bastasse esse passado pouco recomendável, ainda conseguimos, no Brasil, agravar mais o significado, com palavras e expressões como: cavar, ralar, suar, trampar, dar duro, pegar no batente, pegar no pesado, dentre outras. Ninguém que exerça a atividade identificada com essas palavras ou expressões ganha bom salário. Bom salário só ocorre quando a atividade é identificada com expressões do tipo: presidir, gerenciar, dirigir, coordenar, administrar, elaborar um projeto, coordenar um grupo de trabalho, empresariar um jogador de futebol famoso ou uma dupla sertaneja estourada na mídia. Mesmo assim, todos esses, embora remunerem condignamente, também exigem esforço.
No entanto, há certos trabalhos fáceis, suaves, gratificantes (óbvio que não estou pensando no salário mínimo!), isto é, trabalhos moles.
Um deles, por exemplo, é o daqueles papagaios de candidato, que ficam atrás do patrão, nos discursos, balançando a cabeça em sinal de aprovação às grandes ideias apresentadas para a salvação do país. Em tempos de campanha política, é muito fácil vê-los compondo a cena reproduzida nos noticiários das tevês. Lá estão eles, como aquelas tartaruguinhas em miniatura que balançam a cabeça ao menor movimento. E, quanto mais improvável seja o conteúdo da promessa, mais eles balançam a cabeça.
Outro trabalho mole é, nas redações dos jornais, o do cara incumbido de colocar entre parênteses a atualização da data no texto da notícia:
                                   “O líder sindical afirmou:
- Iremos amanhã (hoje) ao Ministério, para fazer nossas reivindicações.”
Viram como esse servicinho é fácil? É só ir lá e colocar nos parênteses.
Um muito tranquilo, de remuneração sempre boa, até porque não exige contrapartida, é o de aspone (assessor de po... nenhuma). Não faz nada, a não ser deixar o paletó no espaldar da cadeira, marcando território, dizendo para todos os idiotas que ralam no setor que aquele lugar tem dono. De vez em quando, tem de trocar o paletó, para não pegar mal.
Mas o trabalho do aspone é um pouco mais difícil do que o do funcionário fantasma, já que este nem precisa ir ao local de “trabalho” depositar o terno. O funcionário fantasma é tão fantasma que lá não aparece, ninguém sabe quem é, ninguém jamais o viu. Mas o salário pinga na conta no fim do mês, senão na sua, naquela de quem lhe deu o cargo. Mas que pinga, lá isso pinga, pode ter certeza!
Personal trainer de dondoca é outro trabalho fácil, bem remunerado e prazeroso. Vá que a dondoca seja carente! Aí a coisa rola (e não, rala!). O ambiente de trabalho é frequentemente agradável: uma bem montada academia, o calçadão das praias de Ipanema, do Leblon ou de Copacabana, ou a própria bela casa de sua pupila. Neste último local, costuma rolar, após as árduas maratonas, um refrescante suco de abacaxi com hortelã com biscoitinhos integrais.


Zé Mayer trampando para ganhar seu salário em "Viver a vida".
 Agora, vamos ser sinceros, o melhor trabalho que existe é o de beijar belas atrizes do cinema e da tevê. A gente fica olhando (digo por meu lado) aqueles abestados beijando a Camila Pitanga, a Paola Oliveira, a Ana Paula Arósio, a Thaís Araújo, dentre outras – isso para ficar só no produto nacional, e ainda receberem salário por isso. Conheço um monte de marmanjos – eu incluído – que até pagaria salário mensal à emissora só para ficar ali, pendurado no beiço daquelas belezuras. De não querer arredar do local em prazo bem alongado. Eh! trabalhinho difícil! Benza, Deus!

28 de outubro de 2010

ESSA INTERNET É UM PERIGO!

Diante do computador conectado, fica-se mais visível que diante desses modernos scanners corporais de aeroportos. Por isso é que ultimamente ando apavorado com a capacidade que a Internet tem de saber dos detalhes mais íntimos da vida da gente. E olhem que não faço parte de nenhuma dessas comunidades de Facebook, Orkut, etc. Não exponho minhas intimidades na rede. Por isso ando com uma pulga atrás da orelha.
Aliás, por falar em Orkut, há uns três anos atrás, Patrick, um jovem de seus vinte anos, meu colega de trabalho – quando ainda me dava a essa veleidade –, me perguntou se eu tinha lá alguma coisa que andava circulando pela Internet. Disse-lhe que não. Do alto de sua irresponsabilidade quase juvenil, disse:
- Então vou entrar no seu Orkut e botar lá.
Imediatamente lhe disse:
- Patrick, você me respeite, que já sou um senhor adentrando na terceira idade e não vou admitir que um cara recém-saído das fraldas ponha qualquer coisa no meu Orkut.
A risadaria foi geral. Mas devo admitir que fiquei constrangido com aquela história. Nomezinho mais esquisito do inventor da coisa! Mas, em Orkut que mamãe botou talquinho, não é qualquer fedelho que vai introduzir nada.
Agora tenho recebido com insistência mensagens eletrônicas, anunciado o paraíso: ora querem me vender Viagra a preço de ocasião, ora se propõem a aumentar o tamanho do meu tênis como num passe de mágica. Uns falam em três centímetros, outros em quatro, cinco e, hoje, chegou um prometendo oito centímetros. Estou ficando muito tentado com essas ofertas. Quando chegarem a vinte centímetros, mais uma caixa de Viagra de brinde, tenho quase certeza de que não vou resistir.
Mas, pensando bem, o que eu faria com os dois?
Quando atingi os sessenta anos, comentei com meu primo Roberto Bedu que a língua portuguesa às vezes é muito irônica. Passamos a ser sexagenários, quando o sexo já está na curva descendente de uma espiral diabólica. Sexagenário deveria ser quando temos vinte, trinta anos. Depois disso, também, já é forçação de barra. Aos sessenta, deveria ser alguma coisa como broxagenário.
Assim, o que eu faria com essas duas maravilhas da ciência moderna que me chegam quase todos os dias em meu correio eletrônico: mais vinte centímetros no meu tênis e uma caixa de Viagra? Vai ser arma pesada, com munição farta, de manipulação quase impossível.
Toda essa conversa fiada me fez lembrar do amigo Fernando Lemos, grande professor de Linguística, que disse, certa vez, que o homem tem três fases, relativamente a sua vida sexual: 1) fase psicológica: é só pensar, que o bicho funciona; 2) fase mecânica: se não manipular, o troço não calibra; e 3) fase hidráulica: é só tesão de mijo, com perdão da expressão chula, e olhe lá!
E, se quiserem dar boas risadas a respeito, é só clicar na seta na imagem, para ouvirem Zé Mulato e Cassiano darem uma explicação musical muito bem humorada sobre o assunto.


PS: Acabou de chegar um e-mail com conselhos para "incendiar o relacionamento". Acho que vou comprar um litro de álcool e uma caixa de fósforo.

27 de outubro de 2010

INADAPTAÇÃO

Auguste Rodin, Os burgueses de Calais
    
a vida não tem mistérios
                porém insoluções
                           ignorâncias
vivê-las
            em permanente violência
a seus limites
é que faz do homem
essa coisa
               mal adaptada à existência

26 de outubro de 2010

ZÉ DE LINO

(Para o professor José Luiz Padilha Martins)

Ao chegar a certa idade, com a cacunda já devastada pelo trabalho árduo, Zé de Lino abandonou a lida da roça, essas coisas de tocar a enxada, carpir mato, cavucar terra para plantar, e aceitou o emprego de zelador do prédio do recém-inaugurado Ginásio Liberdade, vizinho do velho Grupo Escolar Marcílio Dias.
A chegada do curso ginasial à vila também trouxe uma onda de orgulho aos moradores, carentes de melhores oportunidades para seus filhos que quisessem prosseguir os estudos e pudessem, com isso, encontrar novos caminhos a trilhar.
Embora fosse aquilo que se possa chamar de caipira, Zé de Lino sabia muito bem da importância da escola. Ele mesmo tivera filhos que não puderam escapar ao fatalismo de estar visceralmente presos à terra, por conta de suas próprias limitações.
Por isso, a benquerença, a estima por escola e livros se colocava na extremidade oposta de sua parca e mal letrada vida de homem roceiro, que assinava o nome assim, assim, com umas garatujas desgovernadas, caneta e lápis bichos ariscos para suas mãos cheias de calos. Se ele não conseguiu entrar pela porta da frente da escola, não seria por isso que se rebaixaria. Deliberou que, a partir de então, não mais seria aquele mocorongo simplório, de fala estropiada. Já que estava trabalhando no Ginásio Liberdade, tinha de cuidar também do seu jeitão de falar, como cuidaria do prédio e do espaço anexo. E pensou lá com seus botões: “Tá morto o matuto pé-duro. Nasceu um novo homem letrado!”.
Passou, assim, a aproveitar todo tempo vago para ler o que lhe caísse nas mãos. Era com dificuldade, tanto pela fraca instrução, quanto pelas vistas vacilantes, que lia isso e aquilo, tendo no dicionário sua predileção. Às vezes, já tarde da noite, após o serviço, morgava sobre a mesa o corpo cansado a cobrir o livro, a mulher tendo de chamá-lo a ir para a cama.
Não demorou nada e começou a disparar frases e mais frases que passaram a assustar os ouvintes. Ô, diacho! De onde, diabos, Zé de Lino tirava aquelas palavras, de combinação estapafúrdia, para dizer as coisas mais banais do mundo? Se lhe perguntassem simplesmente o que achava do tempo, ele respondia:
- Na minha imaginação cismática, a precipitação de água deixará canídeos submersos!
- Tem fogo aí para um cigarro, seu Zé?
E ele, todo soberbo, voz gutural a sublinhar a frase pomposa:
- Olvidei o equipamento ígneo no recesso do lar.
Ao lhe dizerem “Bom dia, seu Zé!”, a resposta vinha tortuosa, quase esquizofrênica:
- Bom interregno de tempo diário para você também!

Certo dia, tendo faltado material para a limpeza dos banheiros, como lhe comunicou a faxineira, dirigiu-se ao diretor, professor Padilha:
- Vim requerer a Vossa Senhoria a liberação de estipêndios, a fim adquirir no comércio local insumos desinfetantes para as zonas de micção.
E, se o diretor não conhecesse a figura, seria bem provável que o odor de ureia extravasasse os umbrais do mijadouro, pela falta de verba.
Depois de trabalhar o tempo que lhe permitiu requerer a aposentadoria, assim que voltou do posto do INSS, onde protocolara requerimento autuado dentro das exigências burocráticas, anunciou a todos que se encontravam na secretaria da escola:
- Presentemente desejo manifestar o intencionamento de dar baixa nas minhas atividades laborativas e adentrar no rol dos subvencionados pelas burras governamentais.
- O quê?! – espantaram-se todos, sem entender.
- Como diz o vulgo: vou me aposentar, súcia de apedeutas!
Tão logo lhe foi deferida a solicitação pelo órgão do governo, botou o pijama e também aposentou sua linguagem arrevesada para nunca mais. Que aquilo de carpir livro, cavucar dicionário, semear frases, dava um trabalhão danado para os miolos! Afadigava sobremaneira o conteúdo acinzentado da caixa craniana! Arre!

25 de outubro de 2010

NOVAS EXPRESSÕES PARA NOVOS TEMPOS


Uma vez que é irreversível ser politicamente, socialmente, ecologicamente, racialmente, etcmente correto, e tendo em vista algumas palavras e expressões que já circulam por aí, resolvi assumir o troço e também propor a mudança de velhas palavras, carregadas de sentidos preconceituosos, por novas expressões que rompam esse espírito. Abaixo vão algumas (a lista pode aumentar com o passar do tempo).
Em vermelho as formas reprováveis, que não devem mais ser utilizadas por pessoas decentes; ao lado, as formas recomendadas a essas mesmas pessoas. Isso, é claro, se alguém fizer absoluta questão de ser uma pessoa decente neste país!
Quero esclarecer que, sempre antepondo-se à nova expressão, deverá ser usada palavra denotativa de deferência e consideração (cidadão, senhora, senhorita), sem a qual a expressão pode parecer desrespeitosa, o que, convenhamos, é justamente o contrário desta nossa proposta. Tenho a impressão de que uma das razões por que o Japão é tão desenvolvido deve-se ao fato de que lá sempre usam a palavra honorável (san, em japonês, aplicado ao fim da palavra) para tudo. Por exemplo: o guarda do metrô de Tóquio que empurra a multidão de japas para dentro dos apertados vagões é chamado de honorável empurrador, assim como o que puxa, na estação de desembarque, a multidão de japas enlatados é chamado de honorável puxador. Aqui, talvez, esse honorável puxador tivesse outro sentido. Mas isso não vem ao caso agora.
Os repórteres Jilozinho e Totó, assíduos no blog Interrogações, do amigo Zatonio Lahud, têm feito uso, eu diria mesmo que até abusivo, de algumas dessas expressões, vez que, embora residentes ainda na singela São José do Calçado, primam por uma postura civilizada e responsável.
Eis, enfim, a lista:
Agiota > cidadão lucrativamente cobiçoso
Analfabeto > cidadão apartado do abecedário
Anão > cidadão verticalmente prejudicado (Forma que ouvi de Zatonio.)
Árbitro de futebol > cidadão maternalmente mal referido
Baitola > cidadão prazerosamente cessionário das partes pudendas
Bandido > cidadão habitué do Código Penal
Banguela > cidadão odontologicamente deficitário
Branquelo > cidadão desprovido de melanina (Num país tropical, branquelo é injúria grave!)
Bunda-mole > cidadão francamente irresoluto
Cachaceiro > cidadão compulsivamente aderente ao Pró-Álcool
Cafetão > cidadão corretor de serviços sexuais
Caloteiro > cidadão desmemoriado relativamente a dívidas
Careca > cidadão desprevenido de cobertura capilar
Cego > cidadão luminosamente insensível
Cidadão > abestado (Se quiserem, para compor a expressão: cidadão abestado.)
Corno > cidadão galhudamente decorado
Covarde > cidadão especialista em retiradas estratégicas
Desasseado, porco > cidadão padecente de hidrofobia eletiva
Eleitor > cidadão periodicamente iludido em sua boa-fé
Fanho > cindãdão permanentemente nãsõbstruído
Gago > cidadão fa-fe-fi-falante
Gastador > cidadão pendente ao esbanjamento
Gigante > cidadão verticalmente desabusado
Gorda > senhora/senhorita lipofílica ou afeiçoada a tecidos adiposos
Gostosa > senhora/senhorita gostosa (Essa o politicamente correto vai me perdoar!)
Ladrão > cidadão amigo do alheio (Como há muito referido nos jornais de minha terra natal.)
Loura burra> senhora/senhorita nordicodescendente de Q. I. irrisório
Macumbeiro > cidadão afeiçoado aos orixás ancestrais do continente primevo
Magrela > senhora/senhorita osseamente avantajada
Manco > cidadão periclitantemente andarilho
Narigudo > cidadão cyrano-bergeraquense
Negão > cidadão afrodescendente (Não fui eu que inventei essa; forma já consagrada.)
Orelhudo > cidadão auricularmente avantajado
Pão-duro > cidadão monetariamente afeiçoado
Piranha > senhora/senhorita permissionária de serviços sexuais remunerados
Policial > senhor cidadão puliça (É preciso ter mais respeito!)
Portuga > cidadão panificador luso-vascaíno
Preguiçoso > cidadão reconhecidamente ergofóbico
Sapatão > senhora/senhorita sequiosa da fonte da donzela
Surdo-mudo > cidadão sonoramente debilitado
Velho > cidadão etariamente recalcitrante
Zarolho > cidadão ocularmente bifurcado

Espero que, depois desta tentativa de tornar o convívio social mais harmonioso, com o uso de tais expressões, eu não seja taxado de cidadão semeador de vetustas maledicências.

24 de outubro de 2010

ESTAMOS EXAGERANDO UM POUCO!

Ando um tanto de saco cheio com esse negócio de politicamente, ecologicamente, socialmente, mecanicamente,  periodicamente  correto,  dentre  outros  advérbios  em  –mente que ora não me ocorrem.
No jornal O Dia de ontem, 23 de outubro, há a notícia de que alguém não identificado entrou com queixa-crime contra o galo Natal de propriedade do caseiro Elson Brasiliense, alegando que o bicho canta às quatro e às seis da manhã. Tal atividade, como todos sabem, é característica desse tipo de penoso. Só o local da cantoria é que, como alega o reclamante, não é apropriado: Copacabana. E isso já basta para incomodar!

Até mesmo denúncia de maus tratos ao galo foi feita ao IBAMA, que para lá mandou fiscais que não constataram a veracidade das informações. O código de posturas do município não permite que se criem animais com fins comerciais no bairro. No entanto, Natal é bicho de estimação, a quem seu dono, inclusive, mimoseou com duas fêmeas bonitas e sacudidas. Naturalmente, Natal não virará um brasileiríssimo galo com macarrão, nem um sofisticado coq au vin.
Coitado do bairro de Copacabana! Já foi tão bacana, tão na moda, e agora padece desse tipo de questiúncula. Já há alguns anos também ocorreu semelhante coisa com o grande Darcy Ribeiro e seu galo de estimação. Acho, mesmo, que Darcy preferiu morrer a dar fim a seu bichinho.
No entanto, ninguém, que eu saiba, até hoje entrou com queixa-crime contra o barulho do trânsito, a violência e a sujeira das ruas e o foguetório de fim de ano. Porém o galo, desgraçadamente, é um inconveniente.
Essa conversa toda me fez lembrar a visita que, há muitos anos, meu saudoso tio Herson Schuab fez a Niterói. Depois de conhecer a cidade e seus lugares mais interessantes, falou do alto de sua experiência de homem da roça:
- Jamais ia querer morar aqui em Niterói. Aqui não se pode pisar na grama. Lá na roça, piso à vontade, sem ninguém reclamar.
Mas o interior também já está entrando nessa paranoia.
No princípio do ano, ocorreu em Bom Jesus do Itabapoana um surto de piriri. Em função da trabalheira que deu acertar os intestinos desregulados de muita gente, segundo as autoridades da área, em função de ingestão de maionese caseira servida nas lanchonetes, o Secretário de Saúde do município determinou a suspensão do fornecimento desse tipo de molho no comércio local. Agora só é possível utilizar-se o produto industrializado, servido em sachês individuais.
Pouco tempo depois, tive o desprazer de constatar também que a velha e boa pimenta, que acompanha muito bem os mais variados tipos de salgadinhos, havia sido proibida. Só aquele insosso molho industrializado, cheio de química, pode.
Entretanto a paranoia atingiu as raias da insensatez. Há cerca de dois meses, fui até um supermercado da cidade, quando lá estive, para comprar, mais uma vez, o bom queijo minas curado Carabuçu, produzido em uma propriedade rural do meu distrito natal. Fui informado, então, de que, também ele, não pode ser mais vendido, porque não passa pelo crivo da inspeção sanitária.
Ora, para quem nasceu na roça, bebeu leite de vaca tirado da teta na hora, comeu carne de porco morto no quintal da casa, chupou frutas colhidas no pé – inclusive goiaba com bicho – e ia descalço até mesmo para a escola primária, isso chega a ser frescura. Vocês podem até contra-argumentar que tudo isso pode gerar problemas. Mas viver é muito arriscoso mesmo!
Aqui o galo não pode cantar; lá em Bom Jesus não se pode mais incrementar um pastel com algumas gotas de molho de pimenta caseira. Como veem, estamos construindo uma sociedade onde qualquer coisa que saia do adverbialmente correto deva ser extinta. Estamos-nos encaminhando para uma sociedade que, embora emporcalhe tudo – é só ver a quantidade de lixo que produzimos e nossos pequenos gestos diários –, quer a assepsia geral como norma.  Como se isso nos absolvesse de todos os nossos outros malfeitos.
(Imagem do galo colhida em eissoeglamour.blogspot.com.)

23 de outubro de 2010

QUANDO EU MORRER

quando eu morrer não me enterrem
espalhem meu corpo retalhado
pelos caminhos de liberdade
espalhem meus sonhos irrealizados
pelas estradas do interior dos homens
e o barro dos meus sapatos
pelas calçadas das cidades

quando eu morrer
o que ficar de mim – se disso possibilidade
houver por mais remota chance –
espalhem com as crianças
e com os cães das ruas

minha memória será pálida
enquanto meu sangue correr
e não se coagulará com o tempo
nem com a comiseração dos outros

a imortalidade é apenas uma farsa
que acalenta nossa existência vaga

OBRIGADO, ESTRELA!

Este espaço teve o auxílio luxuoso da "personal blogueira" Estrela Santana, a quem agradeço o cuidado e a paciência, para a remodelação por que passou. Se quiserem suporte na área, é só clicar no link na lateral do blog.

22 de outubro de 2010

UMA VIDA DE FRASES FEITAS

Agora estava ali, sentado no meio-fio da calçada, em frente ao botequim cheio de homens à toa, jogando conversa fora, falando mal da vida alheia, cuspindo o sarro grosso de conhaque barato no chão da rua. Ao seu lado, de pé, o amigo passava-lhe uma descompostura por tudo que fizera. Uma biografia cheia de deméritos.

A mulher expulsara-o de casa pelo acúmulo de desregramentos durante a vida conjugal. O ponto culminante da cordilheira de ignomínias que ergueu foi ter ido a uma pousada beira de praia com seu filho adolescente, que lhe serviria como um álibi, e a amante.

E o pior de tudo é que o próprio filho, com dezoito anos pelas platibandas, aplicou-lhe um par de chifres, lá mesmo, na estada que deveria ter sido idílica, e acabou fugindo com a devastadora para Santa Catarina, onde, além de cobertura na praia da Joaquina, detinha ela ainda cargo na administração federal, cujo salário era de fazer inveja a muito marmanjo. Por isso deu de um tudo ao fedelho, na posse de todas as forças da natureza, benza-o Deus! Do coroa, não quis nem mais saber o número do telefone, que apagou da memória do celular.
Agora estava ali, sentado, chorando, levando um esporro do amigo, e sem condições de contra-argumentar absolutamente nada, por inepta qualquer fundamentação que pudesse desfiar. Sempre fez o que quis. Agora, aguentasse as consequências. A mulher, coitada, sofrera calada todas as traições, sempre recebendo ligações de uma e outra que, por vezes, lhe diziam infâmias, garantido o anonimato do telefone sem identificador de chamada.
Quando tinha qualquer entrevero em casa, ia para esse mesmo botequim encher a cara e dividir parolagens com os amigos de copo, para os quais sempre posava de garanhão inveterado e incorrigível. Voltava, então, já tarde, a mulher dormindo, e enfiava-se na cama sorrateiramente como bicho sem dono.
Agora estava ali, sentado, ouvindo poucas e boas do amigo sincero, que não media palavras, para dizer de seu comportamento censurável, da vida desregrada, da justeza da esposa que o mandara embora, sem mesmo permitir que pegasse uma mísera cueca limpa que fosse. Vai procurar sua turma, canalha! Foi a última frase que ouviu, antes de descer pela escada do prédio, pois teve vergonha do vizinho que esperava o elevador naquele mesmo instante. Não tinha coragem de olhar na cara de ninguém. Por isso foi direto para o botequim, esperando que o Araújo ali estivesse e talvez pudesse falar algo que lhe levantasse o ânimo, lhe desse algum alívio. E o que aconteceu? Ouvia do amigo de tantos tragos e garrafas o que não queria. Daquela cantilena ele já sabia, pois, cada vez que ia para o banho, a água na cabeça lhe dava um pouco de reflexão sobre toda a porqueira em que vivia. Mas era só enxugar os cabelos que tudo parecia voltar ao que era antes. E umas gotas de perfume distribuídas aqui e ali ressuscitavam o sibarita irrecuperável.
Sentava-se à mesa para fazer as refeições, a mulher sempre de cara amarrada, e ele puxando conversa, como se nada tivesse acontecido em tempo algum. O mais inocente dos maridos, o mais santo dos homens. Mas as mulheres sabem mais do que imagina a pretensão masculina. E ela acumulava em cada pé-de-galinha dos olhos a mágoa por ter-se casado com aquele pulha, aquele traste. E, mais hoje, mais amanhã, pensava, iria mandá-lo embora, nem que tivesse que comer o pão que o diabo amassou. E pensava sempre: antes mal acompanhada do que só, como dizia sua já falecida avó Mariquinha, de muitos maridos e muitos defuntos acumulados, cada um pior do que o outro.
Reclamou com o Araújo que até o filho, quando ligava para casa, não queria falar com ele, só com a mãe. Se ele atendesse a ligação, desligava sem dizer nada, mal reconhecesse sua voz. E foi para isso que eu gerei aquele infeliz, Araújo? Indagava, tentando compreender tudo. Se Araújo lhe dissesse que quem semeia vento colhe tempestade, estaria chovendo no molhado. Ele sabia de todos esses detalhes. Só que nunca imaginou que seu reino fosse ruir como um castelo de areia, levado pela maré.
Agora estava ali, sentado no meio-fio, enxugando as lágrimas que não derramara durante toda a vida e que estariam presentes para o resto dos dias ainda a serem debulhados na folhinha. Sem prazo para se estancarem.

21 de outubro de 2010

PAÍSES

há vários países em meu corpo
vagando por entre as veias
rugindo nos escondidos do meu cérebro
há um país dos corruptos
outro dos entreguistas outro dos poderosos
outro dos ariscos
e um outro tão delével e frágil
que nem sei onde se esconde
só lhe sei o nome bobo:
é o país do povo!

20 de outubro de 2010

FOME

Banham os campos de arroz
de verde e amarelo
a fome do povo
e o desespero da tarde que morre
na serra de Flores.
Não há centeio cevada
apenas o arroz plantado na vargem
enlameando os pés dos homens
costas curvadas como enxadas
e as mãos grossas.
Não há trigo nem soja
só a planura calma
dos cachos dourados do arroz
das vargens de Miracema.
E parece que toda a fome do povo
soluciona-se na visão tranquila
desses arrozais sazonados.

19 de outubro de 2010

TÉDIO

bocejo
olhos em nada
horizonte nulo
paisagem interior zerada
percepções externas adormecidas
o amanhã escrito na areia da praia
todas as convulsões sociais num copo d’água
no quarto em desalinho um cheiro nauseante de dormido
nos tímpanos cansados o som é só um vácuo
e na boca amarga sabor de trapos
nuvens espessas pela sala
desilusões sem rumo
vida sem remédio
tudo inútil
tédio

18 de outubro de 2010

ANTES SÓ DO QUE MAL ACOMPANHADA

Acharam no bolso do cadáver atropelado na esquina bilhete de despedida para a mulher. Não que ele tivesse cometido suicídio. A morte fora uma fatalidade. É que ele já tinha dado o pinote, abandonado o barco matrimonial em meio a uma tempestade doméstica sem precedentes. Então, para não encarar os fatos de frente, para não ter de discutir a relação pela centésima vez nos últimos meses, preferiu uma saída desonrosa. Num momento de distração dela, saiu de mala e cuia, por assim dizer, e foi para um hotel de cavaleiros que fica no centro do Rio de Janeiro, pelos lados da Lapa. Iria mandar o bilhete pelo correio. Só que não houve tempo.

Parece, entretanto, que a moira não concordara com sua atitude e resolveu pregar-lhe uma peça. Antes mesmo que desfizesse as malas e arrumasse suas roupas no armário acanhado do hotel, saiu para comprar cigarro e foi atropelado pelo caminhão de lixo, que resolveu aproveitar a mudança de sinal e avançou na luz amarela. O resultado foi que metade da sua pessoa ficou sob a roda do caminhão. O fedor insuportável que exalava do caminhão, inclusive, espantava os curiosos, que ficaram de longe a observar a cena.

Depois de recolhido pelo rabecão e removido para o IML, teve esse mau passo revelado, porque a agora viúva fora chamada para reconhecer o corpo. Ela, que já estava preocupada com o sumiço do marido desde cedo, suspendeu o choro no necrotério, tão logo viu as mal traçadas linhas com a desculpa esfarrapada em que ele lhe jogava toda a culpa da separação sobre as costas. O traste não teve nem a decência de reconhecer que fracassara como marido, foi o que ela pensou, quando chegou ao fim da leitura. Miserento covarde! Ainda me dá o trabalho de me despencar do Cachambi para vir até o IML e olhar essa cara de tacho, com o estupor da morte estampado nos olhos, continuou pensando.

O médico responsável pela necropsia lera o bilhete e se desculpou pelo fato, dizendo que lamentava muito a situação ter chegado a esse ponto. Ela disse que não era nada, que o casamento já estava mesmo se esboroando, não era de hoje, só que ela não esperava que ele fosse sair sem dizer palavra viva, de própria boca, e usasse o jeito unilateral de dar por encerrada a convivência, sem que ela pusesse o ponto final, o arremate, como era de seu feitio – a última palavra sempre a dela. Agora ali, diante do defunto, tinha seu discurso inconcluso, impossibilitada de lhe dizer poucas e boas, de lhe jogar na cara todas as mágoas e reclamações. Tá bom também!, pensou em seguida. Fico com a pensão dele, recebo o seguro, pinto a casa de verde alface, e sento-me na varanda, para tomar licorzinho com as vizinhas, contando mentiras de minha vida com ele. Todas ficarão com inveja de mim, com dó do sucedido, dizendo que sou muito nova para viver sozinha, que precisarei novamente de um marido bom como ele. E eu vou rir por dentro, disfarçando tudo, sem querer nunca mais saber desse bicho esquisito que é homem, que gosta mais do time de futebol do que da gente, que reclama por pouco sal ou muito sal na comida e ainda tem o desplante de pedir que lhe peguemos uma cervejinha gelada, para não perder o lance do jogo. Faça-me o favor! Antes só, do que mal acompanhada.

17 de outubro de 2010

DEPOIS DO SOL, FOI-SE A VIDA

depois do sol
saiu também da minha vida o teu sorriso
a tua gargalhada lúbrica de bruxa
e não sobrou sorriso pra comemorar
depois da lua
entrou no meu vazio a tua negra ausência
aquele antigo estado d’alma ledo e cego
e uma escuridão atônita de medo
e foi-se o tempo
em que os mesmos pés de milho embonecaram
nas encostas verdes dos morros ondulados
fertilizados pelas chuvas de verão
e foi-se a vida
correndo de mansinho pelas minhas veias
dilaceradas pelas farpas dos teus dedos
sangrando todas os meus sonhos pelo chão

16 de outubro de 2010

DEU LADRÃO NA PENSÃO DE DONA DINORAH

Já quase uma da madrugada e estava estudando Literatura Francesa, para a prova que aconteceria na semana seguinte. Era um sábado e, no meu quarto de três camas, o Milton dormia, depois de ter vindo da casa da noiva, e o Luís do Bá, como sempre, andava pela noite, em libações.

Atento à leitura que fazia, sob a luz de abajur na mesa colada à cabeceira da cama do Milton, não percebi quando ele se levantou para ir ao banheiro. Na volta, sim, porque veio alvoroçado e me disse entre dentes uma frase que foi preciso repetir, porque não atinara para seu sentido:

- Você não sabe de nada e não viu nada!

E se deitou novamente, cobrindo a cabeça com o cobertor ralo típico de moço de pensão.

Não deu dois minutos e entrou pelo quarto, enrolado numa toalha, empunhando uma pistola Mauser 7.65 automática, o vizinho, que entrara pela janela do banheiro, através do telhado da casa da pensão geminada à sua (como já disse no primeiro texto deste blog - Hoje eu vou dormir com um homem de obra). Estava à procura de alguém que tinha chegado à janela do seu banheiro, parede-meia com o banheiro da pensão, no justo momento em que tomava banho, àquela hora da madrugada, sabe-se lá por quê!

Quando me viu, perguntou se percebera alguém entrando no quarto. Aí a ficha me caiu. Falei que não tinha visto ninguém, que estava estudando ali já há um bom tempo e que ninguém entrara no quarto. Ele disse que havia entrado ladrão pela janela do banheiro.

Ao perceber meu colega deitado, todo coberto, puxou-lhe o cobertor e como que reconheceu a cara que vira, num átimo, olhando pela janela.

- Foi você, seu canalha, que estava olhando pela janela do meu banheiro! Por quê? O que é que você queria?

Milton jurou de pés juntos que não fora ele, que não saíra daquela cama desde que se deitara, por volta das onze da noite, pedindo, inclusive, meu testemunho. Garanti que sim, que ele não arredara o corpo da cama.

O homem estava possesso, asseverando que era ele, e saiu procurando pelos outros quartos, vazios àquela hora propícia à boemia.

O pandemônio instalado na parte superior da pensão acabou por acordar Dona Dinorah e as moças que moravam no térreo. Todas ficaram espantadas com o fato de que alguém, supostamente, tenha invadido a casa. Ao saberem da possibilidade de ter sido um ladrão, já escafedido do local, Nêmesis, moça bem-humorada, ainda rogou praga no possível invasor, por se ter metido em domínios masculinos do segundo andar, enquanto na parte de baixo, segundo ela, havia várias donzelas desamparadas:

- Bem feito! Tomara que seja preso! Onde já se viu isso: com tanta mulher carente aqui em baixo, vai logo se meter nos quartos dos rapazes!

Passada uma meia hora de tumulto, o vizinho, ainda de arma em punho, falando pelos cotovelos, acreditando piamente que era o Milton o autor da façanha, dizia que não iria prejudicá-lo, levando o caso à polícia, porque sabia ser ele também colega bancário. A suspeita se fez forte, porque Milton esquecera as sandálias de dedo junto da janela. Na contra-argumentação, Milton dizia ser comum os rapazes esquecerem suas sandálias no banheiro. Desculpazinha muito da esfarrapada, que o vizinho não aceitou.

Enfim o vizinho voltou para sua casa e o zum-zum-zum ficou zoando na madrugada da pensão por quase uma hora, até que tudo voltou ao normal.

Tudo sossegado, quis saber do Milton o que, de fato, acontecera.

Ele, com os olhos vermelhos de sono, então me disse que, ao se levantar para ir urinar, ouviu o barulho do chuveiro da casa ao lado. Imaginando que fosse a mulher loura, bonita, gostosa e um tanto dadivosa do vizinho a tomar banho àquela hora, resolveu dar uma olhada, como vários rapazes na pensão faziam. Deu azar, pois era o marido, que viu aqueles grandes olhos curiosos na janela de seu banheiro.

E eu, inocente e bobo na situação, ainda tive de dar falso testemunho para as malandragens do Milton.

Vida em pensão é fogo!

15 de outubro de 2010

NÃO HÁ JARDIM NEM FLORES

não há jardim nem flores
muito menos verduras frutas e legumes
hortas e pomares.
a terra está definitivamente calcinada
as fontes de água soterradas
e o ar contaminado
e ninguém sabe ninguém viu
ninguém nem aí.
já o ouro – esse corruptor –
poucos o possuem
e deixam as migalhas para todos
as migalhas da miséria
para repartir como na multiplicação dos peixes e dos pães:
uma concessão benevolente dos novos deuses.
não há pátria nem esperança
apenas o latifúndio improdutivo de alguns
e o desespero degredado de milhões.
não há poesias nem risos
só os ventres vazios os corpos corrompidos
e o horizonte fechado a cadeado.

13 de outubro de 2010

HORÓSCOPO

Dia desses faltou energia elétrica, mais uma vez, na cidade. Sem nada para fazer, fiquei em casa, num canto da sala, quieto, pensando na vida. Eis senão quando, desandei a psicografar um horóscopo único e definitivo, com orientações para a vida de cada um. Não sei quem mo ditou (como diria um gramático purista), mas tenho a impressão de que foi o tal “anjo torto, desses que vivem na sombra”, do grande Carlos Drummond de Andrade.

Como sei que muita gente não dá um passo na vida sem saber o horóscopo, tento com este resolver a questão, para que vocês não sejam obrigados a consultá-lo todos os dias. Uma vez basta. É como aquela injeção antiga para sífilis, a famosa 1914: se não matava, curava.

Confiram aí e vejam o que se aplica a quem. Coloquei em ordem alfabética, porque o anjo não meu deu a sua cronologia.

Aquário – Você está mais para aquário de peixinho dourado do que para Aquífero Guarani, Lagoa dos Patos ou reservatório de Xingó. Por isso, é bom baixar um pouco a bola, senão sua batata assa. Aproveite e tampe sua caixa-d'água, para evitar a dengue.

Áries – Essa mania de aventura que você tem o máximo que pode permitir é uma pescaria num açude, num fim de semana. Pegue seu símbolo e o transforme numa garateia que, no mínimo, você poderá pegar baiacus e lambaris. Peixe grande? Só em Holywood.

Câncer – Você não é a doença, felizmente. Em compensação, é regido por aquele bicho que só anda de marcha a ré. Já viu: seu futuro está na traseira. E não adianta querer consertar, porque isso é um determinismo astrológico. Os astros não estavam brincando quando o escolheram. Agora aguente!

Capricórnio – Você tem de tomar tenência e procurar fugir desse carma zodiacal, cabra chifrudo! Ou sua vida será uma eterna chacota. Não faça como os de Touro que, não sabendo a força que têm, passam a vida dando cornadas. Entre no rumo, tome tento, cabra chifrudo!

Escorpião – Seu veneno não mata nem de raiva. Não vá usar sua traseira fortuitamente, tentando pegar os outros. Vai que você acabe gostando. Aí não pegará bem, não é mesmo? Principalmente se a sua orientação sexual for tipo positivo/negativo ou negativo/positivo.

Gêmeos – Não se desesperem se, de manhã, vocês não sabem quem sua mãe acordou. Um dia, vocês terão a chance de trabalhar numa novela da Globo. É só fazerem um retrospecto. Se não morrerem antes da próxima, certamente serão convidados a estrelá-la.

Leão – Você pode ser rei pra suas negas e, mesmo assim, lá no mato onde nasceu. Aqui na cidade grande, seu urro virou miado e qualquer vira-lata é mais esperto que você. A propósito: corte essa juba, que você não está na Argentina!

Libra – As coisas andam muito pesadas para você, e suas costas não aguentarão. Procure aliviar um pouco e tire essa empáfia que carrega nos ombros. Vai ajudar bastante. Lembre-se de que sua libra não é a moeda inglesa: é só peso.

Peixes – Tu não estás com nada. Nada fazes, nada esperam de ti. Tu és um nada à esquerda, pior que zero, que, pelo menos, ainda é escrito. Desiste, peixe, e vai procurar teu cardume! Antes que um tubarão te engula. (Ditado por anjo letrista de samba-canção: sempre na segunda pessoa.)

Sagitário – Sua mira é cega. Você não acerta uma e, mesmo assim, continua infernizando a vida da(o) colega de trabalho com diretas e indiretas. Entre num curso de tiro ao alvo ou então aprenda a letra do samba de Adoniran Barbosa.

Touro – Chifre não existe, é uma coisa que botam na sua cabeça. Com base nessa sabedoria popular, é só sair dando cornadas a torto e a direito, sem se importar para o que as más línguas possam dizer. A felicidade é o dom supremo.

Virgem – O que é isso?! Isso está fora de moda! Arranje um preservativo, um anticoncepcional e detone o troço. Se passar muito tempo, aí só na base da britadeira. Pode acontecer, então, de mais ninguém querer colaborar. Vá por mim!

(Omar Xerife, astrólogo egípcio radicado no Badu.)

12 de outubro de 2010

ORAÇÃO

rezarei sobre teu corpo todas as orações
do amanhecer ao sol posto
e traçarei os rumos da minha vida
com a beleza transcendente do teu rosto
no exato momento do gozo
e depois me perderei me salvarei
e inundarei a minha alma sem razão
com os descompassos do teu coração
e me deixarei ficar sem máculas
redimido
por todos os séculos dos séculos
amém

11 de outubro de 2010

NENA E ANQUIMAR

Nena e Anquimar trabalhavam no velho caminhão Chevrolet Gigante da fábrica de manteiga de Libelton Boechat. Anquimar, o motorista; Nena, o ajudante, incumbido de tirar e colocar latões de leite na carroceria. Anquimar tinha o olho esquerdo desviado mais para a esquerda, estufado, inconfiável para golpes de vista. Nena era fanho, gago, completamente caolho, cabeça achatada na testa, dentição irregular, queixo embutido, meio pancado das ideias.

Viviam lá os dois às voltas com o trabalho. Enquanto Nena carregava e descarregava o caminhão, Anquimar ficava cofiando a bigodeira preta, logo abaixo do olho esquisito e de uma pinta escura na bochecha. Nena trabalhava e cantava músicas que até hoje os ouvidos ainda não conseguiram decifrar. Enfim, cantava.

Determinada manhã, após a coleta do leite pelas fazendas e sítios próximos, o velho Chevrolet Gigante adentra o pátio da fábrica para a descarga dos latões. Nena, sobre a alta calçada na mesma linha da carroceria, fanhosamente orienta a manobra de marcha a ré de Anquimar:

- Vem, vem mais; pode vim; vem mais que dá! Vem!

Até que o caminhão bate na calçada.

Anquimar, furioso, sai da boleia e repreende o ajudante, aos gritos:

- Isso é modo de guiar a gente, Nena? Tá vendo: o caminhão bateu!

Nena, no seu quase inocente juízo avariado, argumenta cheio de razão:

- Quem manda ocê ser caolho?


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8 de outubro de 2010

SENTIMENTOS

rio calmo
e com tal riso vou levando
o caudal que escorre do peito

choro baixo
e com tal choro irrigando
o fértil chão por onde ando

grito brando
e com tal grito reclamando
por nossos perdidos direitos

sofro tanto
e tal sofrimento vem sendo
apenas parte de um mais amplo

gozo pouco
e com tal gozo percebendo
que há gozo muito mais gozoso

sonho alto
e com tal sonho construindo
o mundo novo que invento

7 de outubro de 2010

A GUARDA NOTURNA

Diziam lá na vila que, à noite, estavam acontecendo coisas esquisitas. Não se tinha certeza de que fossem humanas ou sobrenaturais. As madrugadas ficaram, assim, propensas a assustar os moradores em seu tranquilo sono dos cinquenta. Não encontraram eles, então, outra alternativa a não ser instituir uma guarda noturna, que rondasse as ruas, da meia-noite até o dia clarear.

Vila pequena, guarda pequena: só dois homens. Mas dois valentes, dois destemidos, dois desassombrados. Não dois quaisquer. Sobretudo, dois que se dispusessem a deixar a cama quente e a costela da mulher para bater perna num lugarejo sem vitrines, sem luminosos, sem notívagos. A paga pelo trabalho daria para as compras do mês e sobraria um dinheirinho bom.

Tudo acertado, Zé Carola e Nego Souza começaram na nova função. Cada dia, tinham histórias mirabolantes para contar. Perseguições a vultos que desapareciam por entre as trevas, corrida atrás de um provável ladrão de galinha ou de roupa no varal. Até que, numa noite de lua cheia, abarrotada de malefícios e fantasmagorias, um tiro de garrucha ribombou na vaguidão das ruas. Um uivo macabro se ouviu a seguir. E mais tiros e passos de uma perseguição apressada sobre os paralelepípedos. O sol da manhã veio revelar sobre calçadas e pedras do chão marcas de sangue.

O relato dos dois foi de arrepiar os cabelos. O vulto de um cão negro, imenso, surgido das sombras, olhos faiscantes, dentes luminosos arreganhados, baba cintilante, língua vermelha incandescente, a boca ameaçadora a expelir um bafo pestilento. Zé Carola não teve dúvidas: a encarnação do capeta ou o próprio capeta. Num repente, municiou sua garrucha com cartuchos benzidos por Alziro Zarur através das ondas do rádio e mandou chumbo. O coisa ruim, um fogaréu só, fedor insuportável de enxofre, disparou rua abaixo, até desaparecer na figueira perto do valão. Nego Souza confirmou tudo, tudinho, tudinhozinho, tal e qual Zé Carola contou, sem tirar nem pôr. Só que ele também andou dando uns tiros, embora com cartuchos mundanos, sem serventia para essas ocasiões.

Espantadíssimo, o povo, que acreditava até na Carta Brant de Carlos Lacerda, combinou fazer uma novena em desagravo de qualquer coisa que estivesse chamando o belzebu.

Não foi preciso. Domingos Peçanha, pescando no valão da figueira, descobriu estendido no capim o cadáver do vira-lata preto, de nome Azeviche, que era o divertimento das crianças do lugar.

A guarda noturna foi desfeita no dia seguinte, mas os dois juram de pé junto, até hoje, por tudo que é mais sagrado, quero ver a minha mãe morta, que o satanás, príncipe de todos os infernos, andou, em pessoa, assombrando a vila de Santo Antônio da Liberdade, nos idos do governo do Dr. Getúlio, que Deus o tenha!

6 de outubro de 2010

POEMAS BREVES (I)

I.

põe-se o sol sobre as montanhas.
lá em casa ao lado da mesa posta
as crianças brincam de amanhã.
a luz não se apaga simplesmente.
porém tudo é transitório e perene
como o trajeto do sol.

a noite não desce sobre as coisas
e as consciências.
apenas um pouco de escuridão
transita também em nós.

II.

o relógio marca uma hora qualquer
sobre o peito dos desesperados.
o tempo é incêndio devastador
sem controle possível
de extinção imprevista.
do lado de fora da casa os vírus
e as demais vicissitudes
mancomunam-se para tornar a vida
um interstício de um tempo sem medida.

III

não direi trinta e três entre tosses
meu pulmão está ótimo.
não me queixarei ao analista
de minha cabeça múltipla
ela é até lógica.
o que me incomoda
o que não me deixa dormir sossegado
é essa pátria amada
é esse oba-oba
é esse bode.