22 de abril de 2020

CADA UM GOSTA DO QUE GOSTA


Meu pai gostava de passarinho e de pescaria.
João Mestre gostava de raspar o pé-de-moleque com o canivete, para facilitar comê-lo.
Tio Tatão gostava de tocar sanfona nas festas juninas da escola.
Domingos Peçanha gostava de pescar e contar sobre peixes imensos que lhe escaparam do anzol.
Zé Carola gostava de contar causos de assombração, enquanto fazia caixões para defuntos conhecidos.
Ferreirinha gostava de negociar cavalos e passarinhos de qualidades duvidosas.
Carijó gostava de entrar de sola em atacantes que invadiam a área do Liberdade Esporte Clube.
Zezete gostava de passar filmes no salão do clube.
Moreninho gostava de cinema e de qualquer comida que contivesse carne.
Narck Pontes gostava de espargir música em seu serviço de alto-falantes pelos céus da vila.
Azamor gostava de dar gargalhadas com as patuscadas dos amigos na venda do Argemiro.
Eloy gostava de ouvir jogos do seu Vasco da Gama num imenso rádio Transglobe da Philco, até mesmo durante as sessões de cinema.
Tio Nalim gostava de torcer fervorosamente pelo time do Liberdade, não importasse a categoria que fosse.
Minha avó gostava de fazer biscoito engano, manteiga e broa de milho.
César Portugal gostava da vila e do seu automóvel preto cristaleira de mil novecentos e poucos.
Neném Moreira gostava de dar reguadas nos alunos que não atentassem para suas aulas.
Aristides Lugão gostava de pescar e ajudar meu pai na venda aos fins de semana.
Juca Teixeira gostava de contar bravatas para os outros rirem, enquanto cuidava dos cavalos em sua cocheira.
Argeu, Caburé e Pedro Moranga gostavam de lamber uma branquinha nos fins de semana, até ficarem tortos e contarem estrelas.
João Coleto gostava de dirigir o time do Liberdade, pescar e trocar dedos de prosa com os parceiros.
Meu avô Juquinha gostava de dar gargalhadas, como se a vida sempre fosse benfazeja.
Dona Maria Peçanha gostava de, à tardinha, ir conversar com minha avó e experimentar um quitute fresquinho.
Cristóvão Padilha gostava de política, de suas terras e de ajudar pessoas.
Louro gostava de tocar maraca e pandeiro, acompanhando Darcyzinho ao violão.
Darcyzinho gostava de pinga gelada e de soltar seus trinados em boleros e sambas-canções.
Crevalzinho gostava de fazer casamentos e dar gargalhadas sonorosas.
Alcino gostava de pescar e dar gargalhadas dos causos que ele mesmo contava.
Jeremias gostava de malhar o ferro e lhe dar a serventia precisa no dia a dia.
Dona Olívia gostava de dirigir aquele monte de alunos travessos, que iniciavam seus passos na educação.
Antônio Xambão gostava de ficar sentado em uma cadeira, em seu bar, observando as tacadas dos clientes na mesa de sinuca.
Barrosinho gostava de fazer picolés de vários sabores que encantavam a criançada.
Chico Furtado gostava de fazer pães perfumados e rosca baroa.
Dona Mocinha, esposa do Chico Furtado, gostava de fazer mironga, bom-bocado e marom, que nos deixavam com água na boca.
Dirceu gostava de futucar o dente das pessoas, para aliviar suas dores lancinantes.
Elias Pelanquinha gostava de sair fantasiado no carnaval com um penico cheio de cerveja, com salsichas boiando dentro.
Waldemar gostava de consertar sapatos, dar-lhes brilho e puxar ladainhas na capela local.
Zé da Farmácia gostava de aplicar injeção no paciente e curá-lo daquele mal recalcitrante.
Celestino Amil gostava de fazer pães e ostentar sua família bonita para os vizinhos.
Lódi gostava de prestar serviços aos demais, em troca de alguma ajuda para sua vida difícil.
Eu gosto de recuperar essas memórias, para que o tempo não as deixe no limbo para sempre.

Mnemósine, deusa grega da memória - escultura em granito de Fredrik K. B. (em wikipedia.org).

14 de abril de 2020

DOZE RETRATOS VERBAIS


1. Meu pai está comigo ao colo no banheiro, que fica do lado de fora da casa simples. Aquilo era o que chamávamos de quartinho, de paredes de madeira. É final do dia, e tomamos um banho frio, na tarde quente.

2. Meu pai chega de viagem do Rio de Janeiro, onde fora submeter-se a cirurgia de apêndice. Abre sua pequena mala de couro, de onde sai inesquecível cheiro de maçã, que me impregna as narinas até hoje.

3. Meu pai traz para casa e solta no terreiro uma capivara. Durante certo tempo, foi o nosso bicho de estimação – do meu irmão e de mim.

4. Meu pai sofre terríveis episódios de cólica, que o deixam transtornado. Pensei que fosse perdê-lo, então. Era uma úlcera duodenal, extirpada posteriormente em Itaperuna. Felizmente viveu até seus noventa e cinco anos.

5. Meu pai planta um pé de jamelão, na divisa do nosso quintal com o do tio Nalim. Fico triste quando me diz o tempo em que a árvore começaria a dar frutos. Muito antes do meu tempo psicológico, meu irmão e eu já nos lambuzávamos de roxos jamelões suculentos.

6. Meu pai faz salada de frutas, que coloca numa fruteira de vidro azul, estilo art déco, tempera com açúcar e vinho moscatel. Com uma única colher, serve seus então três filhos, que se revezam na fila: Gute, Eliza e eu.

7. Ao fazer doze anos, meu pai me autoriza a andar em sua espetacular bicicleta inglesa Humber, com a recomendação de que não o fizesse sobre as calçadas da vila, nem caísse com ela. Os meus arranhões o Zé da Farmácia curaria facilmente. Os dela, só na Inglaterra, para repetir a pintura.

8. Meu pai pede que o ajude a levantar o saco de arroz a ser vertido no caixote da venda que tinha na parte da frente da casa. Ao fim da ação, pergunta se eu tinha feito força. Digo que não. Ele diz que a fez sozinho.

9. Na dúvida entre assumir cargo no Banco do Brasil, fruto de concurso público, ou vir para Niterói fazer faculdade, ele me diz, contrariamente a todas as outras opiniões de amigos e conhecidos: “Filho, se você aceitar, ficaremos felizes por estar com um bom emprego e tristes por ir para longe. Se for para Niterói, estaremos felizes por realizar seus sonhos e tristes por ir para longe. A vaga do banco é sua. Você faz o que seu coração mandar”. Vim para Niterói.

10. Caminhando em direção à rodoviária para vir em definitivo para Niterói, ainda que à época não percebesse isso, ele, empurrando sua bicicleta, me diz: “Filho, não tenho dinheiro para sustentá-lo lá, apenas esta ajuda aqui. Mas cuide sempre do seu nome, da sua honra, que é o que temos de nosso. E isso ninguém pode nos tirar”.

11. Um mês após o fim da Copa do Mundo da África do Sul, chego a Bom Jesus para visitá-lo, e ele me pergunta um tanto entusiasmado: “Meu filho, você conhece a Shakira?”. Com noventa e três anos, ainda lhe movia algo bem lá no âmago.

12. No fim da vida, já com a consciência em frangalhos, meu pai me pede que o leve até nossa vilazinha de Carabuçu, porque precisava encontrar sua mãe e falar com ela. E me confessa, menino: “Eu, sem ela, não sou nada, meu filho!”. E morre alguns meses mais tarde.

Hoje ele faria 99 anos.
Saudades, meu velho e saudoso pai!



Café tarde na casa paterna (foto do autor).
Café da tarde na casa paterna (foto do autor).

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Publicado originalmente em Gritos&Bochichos em 11/5/2016.