31 de março de 2012

NO MUNDO DE 2030

Estamos em 2030. E o mundo anda muito estranho.
O biscoito verde soylent green, criado no filme de mesmo nome¹, alimenta a maioria esmagadora da população, há mais de uma década. Sua composição, feita basicamente de carne humana, põe em prática o princípio man eats man², de séculos atrás, em níveis gastronômico e industrial. No entanto, ninguém se considera canibal, antropófago.
Ao mesmo tempo, com a expansão galopante das comunidades homossexuais de todos os matizes - as variáveis ocupam todo o abecedário -, os heterossexuais dos dois sexos, agora identificados apenas como positivo simples (P) e negativo simples (N), tornaram-se minoria e têm de suportar calados todo tipo de discriminação.
Envergonhados, os seres humanos que ainda nascem com esta marca sexual residual procuram esconder da maioria da população sua condição desviante do padrão.
Na formação das novas famílias, duas recentes denominações de papéis sexuais e familiares detêm o monopólio: as pães e os mãis.
Os primeiros, as pães, aqueles que até o fim do século XX eram conhecidos com homossexuais masculinos, constituem agora, de acordo com a nova nomenclatura, famílias de positivoˉ + positivoˉ (ambos expoente negativo: Pˉ).
Os segundos, os mãis, conhecidos até 2000 como homossexuais femininos, formam famílias de negativo† + negativo† (ambos expoente positivo: N†).
A classificação positivo e negativo refere-se ao tipo de acabamento externo da genitália humana: para fora ou para dentro, respectivamente. O expoente, como nas fórmulas matemáticas, refere-se à psique ou, antes, ao comportamento sexual.
Nestas condições, o novo ser humano, gerado por fertilização in vitro, que nasça com o padrão desviante positivo simples (isto é, sem expoente: P), antigamente conhecido tão somente como homem macho do saco roxo, passa a viver em ambiente desfavorável e é levado, pelas circunstâncias, a esconder tal característica.
É o que se dá, por exemplo, com Lexys Z4PY317, filo alpha 4, produzido num laboratório genético do bairro de Aricanduva, na zona leste de São Paulo, conforme consta da sua certidão de nascimento (pelo menos, este documento mantém o nome original).
Cedo ainda, com cerca de cinco anos, Lexys descobriu, um tanto constrangido, que se sentia atraído por seres de padrão negativo simples (N), que representam parcela ínfima da população e outrora eram conhecidos singelamente como mulheres fêmeas da perereca rosa. Tal condição, agora nos seus vinte e cinco anos, Lexys teve de camuflar, sob o manto de um casamento tradicional arranjado de padrão positivoˉ + positivoˉ, a fim de que não escandalizasse suas pães, Astolfo e Adolfo, homos já de certa tradição e prestígio social.
É claro que tal união não prosperou, porque não houve, em princípio, a presumida predisposição para adoção de filhos, como é a praxe atual. Lexys não demonstrava interesse por Axys, que estava constantemente a reclamar, querendo discutir a relação (prática de antigos casais héteros que ainda persistia, apesar dos esforços das autoridades psicossanitárias para sua extinção).
Por este motivo, a relação foi-se deteriorando, até o momento em que Lexys, não suportando mais os gritos mais íntimos do seu ser e diante de suas pães e das pães de Axys, Tenório e Terêncio, saiu do armário e declarou sua condição de positivo simples, com todas as letras. E bradou em alto e bom som:
- Eu sou positivo simples! Eu sou aquilo que vocês antigamente chamavam de bofe, macho do saco roxo! Eu gosto é de negativo simples! Eu gosto é de perseguida, perereca, vagina, seja lá o nome que a coisa tenha!
Aquela linguagem arcaica e chula de Lexys abalou seus familiares, que não tiveram alternativa a não ser expulsá-lo de casa, a fim de que o opróbrio social não maculasse o prestígio de que Astolfo e Adolfo ainda desfrutam.
No momento, Lexys retirou-se para uma comunidade alternativa de pessoas com as mesmas características suas, localizada à margem da Represa de Três Marias (felizmente o nome também foi mantido, apesar de violentos protestos no início da década), onde cada morador, como em Fahrenheit 451³, se incumbe de decorar um romance fescenino, uma poesia erótica, um conto burlesco, uma cantiga de escárnio e maldizer antigos, cujos protagonistas sejam tão somente um homem macho do saco roxo e uma mulher fêmea da perereca rosa.

Cena de Fahrenheint 451, filme de François Truffaut. Em primeiro plano,
o ator Oskar Werner; atrás, Cyril Cusak (em pt.wikipedia.org).
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¹ No mundo de 2020 (Soylent green, no original), filme de ficção científica norte-americano de 1973, dirigido por Richard Fleischer.
² L'homme mange l'homme (fr); L'uomo mangia uomo (it); El hombre come el hombre (es); Man isst der Mensch (al); Homo hominem manducat (lat) Homem come homem (pt-saudações). (Tenho a impressão de que este blog é lido nos mais estranhos recônditos da Terra!)
³ Filme de ficção científica de François Truffaut, de 1966, baseado no romance homônimo de Ray Bradbury, publicado inicialmente em 1953.

Um comentário:

  1. Coincidência: esta semana estava tentando lembrar-me do título deste filme que me impressionou muito nos idos dos 70 - O Mundo de 2020. Lembrei-me dele ao assistir a um vídeo sobre reciclagem e "garrei a maginar" se já não estávamos dentro daquela película. A ficção científica tem esta particularidade: nos levar o mais distante possível no tempo para que possamos perceber o quão próximos estamos de nos perder completamente.

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