22 de março de 2012

PENDURANDO AS CHUTEIRAS

Lá por volta do final da década de 50 do século passado, com meus doze-treze anos, tive um acesso de lucidez e resolvi que não seria jogador de futebol.

No entanto, tal decisão não foi tomada de livre e espontânea vontade, mas antes sugerida - ou determinada - pela observação de alguns dados.
Por essa época, havia na vila um bando de garotos que participava das equipes mirins do Liberdade Esporte Clube. Formávamos as equipes infantil e juvenil do clube. Nosso técnico era o Zé Elias, meio-campista da equipe principal, e não muito mais velho do que eu. Imagino que ele tivesse por volta de dezoito-dezenove anos, se tanto.

O critério, todavia, para estar em um ou em outro grupo não era a idade, como seria de se supor, senão a habilidade no trato com a redonda.
Assim, alguns moleques mais velhos que seus irmãos eram escalados como infantis. Era o meu caso. Mas, também, o de meus primos Délbio e Celinho. Nossos irmãos Guth, Zé Luís e Fernando, respectivamente, jogavam muito melhor que nós. Aliás, incomparavelmente melhor!

Deste modo, Délbio, Celinho e eu, que já começávamos a ter buço, pelos nas pernas e em outros lugares mais e a entrar na muda vocal, éramos dos infantis. Zé Luís, Fernando e Guth, ainda pivetinhos, estraçalhavam a bola na equipe dos juvenis. Era uma total inversão da lógica da vida, ainda que não fosse a do nobre esporte bretão, que se faz por aqueles que tratam a bola por você, com intimidade, com carinho. Era de uma total insensatez lúcida.
Particularmente comecei treinando como ponta esquerda – posição de meu pai, em seu tempo de grande jogador –, pela habilidade que sempre tive com este lado do corpo, embora não seja canhoto, e pela grande velocidade que desenvolvia. Imaginava Zé Elias que eu seria capaz de chegar à linha de fundo, pela esquerda, e de lá fazer os cruzamentos necessários ao centroavante.

Aliada a essas duas características, também tinha um chute muito forte, no meio daquele bando de guris. Tanto que, durante um treino, tentando fazer um cruzamento, chutei a bola que, forte, bateu na cabeça de um garoto bem menor, que foi a nocaute. Ficamos todos preocupados na hora, porque o menino ficou tonto.
Com o passar dos treinamentos, fui deslocado para a lateral esquerda, a fim de não colocar em risco a integridade física do meu pequeno oponente. Nessas ocasiões, invariavelmente o time do meu irmão e dos meus primos menores vencia. Chegava a ser uma espécie de carma. Eu, Délbio e Celinho, já galalaus, sempre perdíamos para Guth, Zé Luís e Fernando. Além deles, ainda havia outros amigos nossos mais novos, exímios com a bola nos pés: Conceli e Dalson, por exemplo.



Cândido Portinari, Futebol, 1935 (em portinari.org.br).

Observe, então, meu caro leitor, que eu já percebia tudo isso àquela altura da vida desportiva.

A isto acresceu-se outro fato.

Numa das primeiras partidas de que participei, na posição de lateral esquerdo, meu tio-avô Nalim, pai do Celinho e do Fernando, benemérito do Clube e torcedor fanático, encostado à cerca interna, ao lado do campo, reclamava de mim e pedia ao técnico, com veemência, minha substituição. Alegava que eu não estava jogando bem, não apoiava o ataque, não sabia combater. Essas coisas que traumatizam qualquer pretendente a Nilton Santos.
Achei aquilo muito ruim e reclamei com minha mãe, sua sobrinha. Tio Nalim era irmão de meu avô materno, o Papai Juquinha. Minha mãe me aconselhou a não ligar para ele, que, inclusive, dava chutes na cerca interna, numa reação sinestésica, ao assistir às partidas do Liberdade. Ele mesmo fora um grande jogador de futebol, quando jovem.

Porém o fato que determinou, em definitivo, o abandono de todas as pretensões de me tornar um craque ocorreu durante uma partida na Usina Santa Isabel, pertencente ao distrito de Carabuçu.
Nossas valorosas equipes viajaram até a Usina, que também mantinha times principais no campeonato bonjesuense de futebol, num ensolarado domingo de manhã, para uma aguerrida rodada dupla: infantis e juvenis.

Entrei todo garboso em campo, para o jogo de fundo, entre os infantis. Por essa altura da vida, os pelos de minha perna já estavam salientemente negros, o buço borrava meu lábio superior e meu tamanho era praticamente o que tenho hoje (Espichei muito até os quatorze anos, mais ou menos, e estacionei, para não fazer inveja aos meus amigos.). Várias espinhas começavam também a brotar em minha cara.
Pois foi só eu dar a primeira espanada no ponta-direita diminuto que se engraçava do meu lado, para ouvir um torcedor, bem próximo à lateral esquerda, gritar ofensa que até hoje reverbera em meus ouvidos:

- Tira essa mãe de família de campo!
O fdp disse exatamente isto. Ele me ofendeu na raiz da nascença, denunciando minha idade, opondo reparos à masculinidade que aflorava em mim e, pior de tudo, fazendo um juízo medonho da minha habilidade com a pelota.

Voltei para casa desconsolado e, mais uma vez, fui chorar as mágoas com minha mãe.
E abortei, a partir dali, uma carreira mal começada, por absoluta falta de intimidade com a bola. Eu a tratava por Vossa Excelência. E senti que jamais seria um craque.

Por isso é que, ainda mais, me aprofundei nos estudos. Na escola, eu era cdf!

2 comentários:

  1. Ai...ai... ao menos dessa o Botafogo se livrou, em compensação ganhamos um belo contista e poeta. Mais um na ilustre galeria Alvinegra.

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  2. Pois é... mas para alegria nossa, a literatura ganhou um craque.

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