Naquela manhã sombrosa, quando distraída foi abrir o pão para brear de manteiga, durante o café, Anunciata encontrou o bilhete assado no meio da massa, em letra caprichada: "Ciata (era assim que o signatário a chamava), desfaz o enxoval. Estou partindo com a Lourdinha, a mulher da minha vida, que me liberou de um tudo, que tu sempre negavas. Vou atrás da minha felicidade. Procura também a tua. Prudêncio/PS: Pode ficar com a aliança.".
O remetente do bilhete era uma mistura de padeiro erótico e seu noivo sacramentado, com previsão de subir ao altar em sua companhia em maio do próximo ano. E, ao ler essas bem traçadas linhas, o noivo já estaria embarcado no trem para o Rio de Janeiro, ao lado da oferecida mulher do muambeiro Vanderwal.
Uma profunda decepção amorosa pode causar grande devastação na vida de quem a sofre. Pois foi exatamente o que aconteceu com a moça.
No interior, quando um coração descuidado chega a este estado de coisas, há algumas saídas previsíveis: a) tomar uma dose de formicida Tatu com guaraná e desencarnar; b) entrar para o convento e fazer votos de castidade eternos; c) recolher-se ao interior da casa, trajar preto, fazer um coque no cabelo e aprender a bordar, marcar, tricotar, com o que consumirá a vida; d) ficar de cotovelos à janela, quase que uma eternidade, especulando a vida alheia ou esperando aparecer novo príncipe encantado que não se transforme em sapo, ao primeiro vento encanado.
Pois Anunciata fugiu a qualquer dessas saídas estereotipadas, que tanto ajudam os contadores de história e os fofoqueiros de plantão. Ela, com o choque causado pela leitura do bilhete, teve um piripaque, um embaçamento nas vistas, uma ausência momentânea, e, quando voltou a si e tomou o tino das coisas, tinha voltado trovadora. Descobrira-se fazedora de versos, da linha direta de Sóror Violante do Céu. Através dos versos expressaria sua coita de amor por toda parte, se a tanto lhe ajudasse engenho e arte, para plagiar o grande Camões.
No entanto, a fim de não repetir o que já repetido vem desde sempre – fazer trovas –, resolveu inovar no padrão métrico e na estrutura da quadra, que, com ela, passou a quintilha. Pois acrescentou um verso final, em forma de exclamação, através do qual, dito praticamente com raiva, resumia o que lhe ia no mais profundo da alma ou do sentimento. Ou dos dois, ao mesmo tempo. Nunca se sabe!
A vila estivesse preparada para a nova poetisa que, sem qualquer tipo de constrangimento, aproveitava as oportunidades em que pudesse declamar seus versos.
Foi assim que se deu sua estreia: aproveitou-se de uma quermesse em benefício das obras da capela de Santo Antônio e, antes que o leiloeiro Alcino começasse a oferecer as prendas, pediu a palavra, justificou-se e soltou sua primeira obra.
Na calada da noite,
Ele se foi;
Na Praça Tiradentes,
Virou um boi.
Chifrudo!
De outra feita, no velório de dona Carmosina de seu Onofre, antes da última reza de encomenda da alma da finada, já embicada para o paraíso, requereu a palavra e liberou seu segundo trabalho artístico.
No oco da madrugada,
Aquele noivo imprudente
Fugiu com a mulher do outro
E a noiva ficou doente.
Cachorro!
A terceira trova renovada de sua lavra saltou no meio da sala, entre licor de jenipapo e bolinhos de chuva, pelo aniversário de sua genitora. Ali caprichou na declamação, como presente à aniversariante.
Minha mãe rogou uma praga,
Invocada do além:
Se ele não casar comigo,
Não casa com mais ninguém.
Tomara!
Em seguida, no salão do Liberdade Esporte Clube, antes que o conjunto contratado para o baile de gala da festa da vila entoasse seus primeiros acordes, Anunciata subiu ao palco e, de microfone em punho, aproveitou a atmosfera um tanto sensual, para praticamente chocar muita dama da sociedade local, com sua mais recente produção.
O que é que tinha a Lourdinha
Que por acaso eu não tenha?
Boca, lábios, peitos, coxas,
E um fogão pra botar lenha.
Perdeu!
O crooner, alertado pelo presidente do clube, tomou o microfone de Anunciata e começou a convocar os casais, no intuito de não deixar margem a novas intervenções dela.
Dali em diante a vila estava refém da trovadora. Qualquer aglomeração, por menor que fosse, se não se dissipasse à sua chegada, seria obrigada a ouvir uma de suas obras.
Outro dia, fui informada,
Pelo marido chifrudo,
Que também já nasceu chifre
Na cabeça do papudo.
Bem feito!
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Gustave Caillebote, Madame Renoir dans le jardin, 1891 (imagem em impressionis-art.org). |
Pensei que Anunciata fosse do tipo Ofélia mas, não. Quando passar a raiva que inda sente pelo Prudêncio, a cidade que se cuide nos seus malfeitos.
ResponderExcluirMuito bom, mas padeiro erótico...hahahahahahaha...nem Nélson Rogrigues.
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