6 de março de 2012

AS TROVAS DE ANUNCIATA

Naquela manhã sombrosa, quando distraída foi abrir o pão para brear de manteiga, durante o café, Anunciata encontrou o bilhete assado no meio da massa, em letra caprichada: "Ciata (era assim que o signatário a chamava), desfaz o enxoval. Estou partindo com a Lourdinha, a mulher da minha vida, que me liberou de um tudo, que tu sempre negavas. Vou atrás da minha felicidade. Procura também a tua. Prudêncio/PS: Pode ficar com a aliança.".
O remetente do bilhete era uma mistura de padeiro erótico e seu noivo sacramentado, com previsão de subir ao altar em sua companhia em maio do próximo ano. E, ao ler essas bem traçadas linhas, o noivo já estaria embarcado no trem para o Rio de Janeiro, ao lado da oferecida mulher do muambeiro Vanderwal.
Uma profunda decepção amorosa pode causar grande devastação na vida de quem a sofre. Pois foi exatamente o que aconteceu com a moça.
No interior, quando um coração descuidado chega a este estado de coisas, há algumas saídas previsíveis: a) tomar uma dose de formicida Tatu com guaraná e desencarnar; b) entrar para o convento e fazer votos de castidade eternos; c) recolher-se ao interior da casa, trajar preto, fazer um coque no cabelo e aprender a bordar, marcar, tricotar, com o que consumirá a vida; d) ficar de cotovelos à janela, quase que uma eternidade, especulando a vida alheia ou esperando aparecer novo príncipe encantado que não se transforme em sapo, ao primeiro vento encanado.
Pois Anunciata fugiu a qualquer dessas saídas estereotipadas, que tanto ajudam os contadores de história e os fofoqueiros de plantão. Ela, com o choque causado pela leitura do bilhete, teve um piripaque, um embaçamento nas vistas, uma ausência momentânea, e, quando voltou a si e tomou o tino das coisas, tinha voltado trovadora. Descobrira-se fazedora de versos, da linha direta de Sóror Violante do Céu. Através dos versos expressaria sua coita de amor por toda parte, se a tanto lhe ajudasse engenho e arte, para plagiar o grande Camões.
No entanto, a fim de não repetir o que já repetido vem desde sempre – fazer trovas –, resolveu inovar no padrão métrico e na estrutura da quadra, que, com ela, passou a quintilha. Pois acrescentou um verso final, em forma de exclamação, através do qual, dito praticamente com raiva, resumia o que lhe ia no mais profundo da alma ou do sentimento. Ou dos dois, ao mesmo tempo. Nunca se sabe!
A vila estivesse preparada para a nova poetisa que, sem qualquer tipo de constrangimento, aproveitava as oportunidades em que pudesse declamar seus versos.
Foi assim que se deu sua estreia: aproveitou-se de uma quermesse em benefício das obras da capela de Santo Antônio e, antes que o leiloeiro Alcino começasse a oferecer as prendas, pediu a palavra, justificou-se e soltou sua primeira obra.
Na calada da noite,
Ele se foi;
Na Praça Tiradentes,
Virou um boi.
Chifrudo!

De outra feita, no velório de dona Carmosina de seu Onofre, antes da última reza de encomenda da alma da finada, já embicada para o paraíso, requereu a palavra e liberou seu segundo trabalho artístico.

No oco da madrugada,
Aquele noivo imprudente
Fugiu com a mulher do outro
E a noiva ficou doente.
Cachorro!

A terceira trova renovada de sua lavra saltou no meio da sala, entre licor de jenipapo e bolinhos de chuva, pelo aniversário de sua genitora. Ali caprichou na declamação, como presente à aniversariante.

Minha mãe rogou uma praga,
Invocada do além:
Se ele não casar comigo,
Não casa com mais ninguém.
Tomara!

Em seguida, no salão do Liberdade Esporte Clube, antes que o conjunto contratado para o baile de gala da festa da vila entoasse seus primeiros acordes, Anunciata subiu ao palco e, de microfone em punho, aproveitou a atmosfera um tanto sensual, para praticamente chocar muita dama da sociedade local, com sua mais recente produção.

O que é que tinha a Lourdinha
Que por acaso eu não tenha?
Boca, lábios, peitos, coxas,
E um fogão pra botar lenha.
                Perdeu!

O crooner, alertado pelo presidente do clube, tomou o microfone de Anunciata e começou a convocar os casais, no intuito de não deixar margem a novas intervenções dela.
Dali em diante a vila estava refém da trovadora. Qualquer aglomeração, por menor que fosse, se não se dissipasse à sua chegada, seria obrigada a ouvir uma de suas obras.
Outro dia, fui informada,
Pelo marido chifrudo,
Que também já nasceu chifre
Na cabeça do papudo.
                Bem feito!

Gustave Caillebote, Madame Renoir dans le jardin, 1891
(imagem em impressionis-art.org).

(A primeira parte desta história está em Lourdinha fugiu para o Rio de Janeiro, publicada dia 24/2/2012.)

2 comentários:

  1. Pensei que Anunciata fosse do tipo Ofélia mas, não. Quando passar a raiva que inda sente pelo Prudêncio, a cidade que se cuide nos seus malfeitos.

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  2. Muito bom, mas padeiro erótico...hahahahahahaha...nem Nélson Rogrigues.

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