Salvador Dali, O sono, 1937 (em artedoconhecimento.blogspot.com). |
Era uma alma insubmissa. Como tal, morreu desfeiteando os circunstantes.
Do leito de morte – a cama de um hospital quase asséptica –, resolveu partir desta com ofensas diversas. Ao médico que o atendia, mandou que tomasse naquele lugar que todos sabem muito bem onde é. O padre, chamado às pressas pela religiosa mulher, a fim de desentortar sua vida, destinou ao inferno mais sulfuroso, com todas as letras. A enfermeira, já um tanto entrada em anos, em vias de se aposentar, e sua companhia no momento final, mandou ir para a casa do... (Bem, todos sabem para onde se mandam os desafetos!). E, por fim, pediu que lhe chamassem a mulher:
- Porra, chamem a Alzira, lá no corredor, que preciso falar com ela!
Talvez fosse a última frase a sair daquela boca suja. A derradeira ofensa.
O médico resolveu fingir que o atendia, pois não desejava que aquela senhora, já bastante abalada, pudesse ser enviada a um lugar de retorno impossível. E, também, aproveitou para sair de perto de um paciente que não se conformava com nada. Era um moribundo revoltado e inconveniente.
Pois eu lhe digo, caro leitor, que a pior forma de morrer é perdendo a vida. Não há outra que se lhe ultrapasse em fatalidade. Quando se perde a vida, a morte é um fato consumado. De se lavrar atestado de óbito, com selo e firma reconhecida, em qualquer cartoriozinho mal instalado e embaixo de correição devastadora.
Imagine, então, um homem que sempre viveu de impropérios, de derramamento de bílis, de má vontade com tudo e com todos, chegar ao termo da caminhada, como se costuma dizer, achando que os sessenta e nove anos foram uma miséria. Poderia ter sido muito mais, segundo seu juízo, embora ele mesmo não tivesse feito nada em favor disto. Aliás, muito pelo contrário!
Quando jovem, para se ter uma ideia, foi morar na pensão de dona Clotilde, em Niterói. Lá ganhou o apelido de Paulo Porra, porque tudo que dizia era pontuado por esta palavra. Era como se fosse uma muleta vocabular para sua frase.
Certa feita, o colega Michel foi apresentá-lo a um amigo que vinha de Bom Jesus, a quem já tinha dito o apelido de Paulo, e fingiu esquecer seu nome:
- Zé Luís, este aqui é... é... é...
- Paulo, porra! – disse aborrecido o apresentado.
- Eu não disse que o nome dele é Paulo Porra! – falou às gargalhadas Michel.
- Porra, porra! – retrucou irritado e saiu sem cumprimentar José Luís.
Então, no exato momento em que se apagava a bateria de Paulo, naquele leito de hospital cercado de vitupérios, Alzira estava na capela rezando, não para que ele sobrevivesse – seria pedir demais e, talvez, o não desejado –, mas para que pudesse ser atendido com o mínimo de benevolência, lá do outro lado, na hora da prestação de contas. E aproveitou para pedir aos santos de sua mais alta estima e devoção que apagassem alguns registros desabonadores, porventura, lavrados no Livro da Vida, em função desse comportamento pornofônico e corrosivo como ácido muriático.
E, assim que sua alma desencarnou, exclamou já no breu do éter, entrando no oco da eternidade:
- Merda, morri! Porra, só me faltava essa!
E foi realmente o último ato de uma vida recheada de mau humor e desbocamento.
Hahahahahahahahaaha...ele foi fazer companhia ao Crissaf, o sujeito mais desbocado que Calçado já produziu. Muito bom!
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