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Luzia era dada à poesia, que fazia nas horas vagas, nos dias turvos, nas madrugadas insones, quando o traste do marido, perdido em vis noitadas – não se sabe onde –, voltava a casa, bafo de ontem, cheiro de orgia agarrado à farda de boêmio inveterado.
E ia Luzia tecendo seus poemas, seus sonetos, seus desabafos em forma de versos: suas dores de cotovelo. Até que um dia o traste, que nem nome tem, para não desmerecer Luzia, achou papelucho amassado na lixeirinha da mesa de cabeceira. E leu o traste espantado aquele recado descartado, por qualquer inexplicável espécie de pudor:
Senhor, concede-me a glória infinita
nesta minha vida
de levar o traste desgraçado
que depositaste nesses dias meus.
Seja de uma forma fulminante,
sem sofrimento longo,
pois não aguentaria nem um só segundo
velar pela saúde desse vagabundo.
É certo que o papel estava roto, amarrotado, a denunciar um remorso repentino, já que na lixeira se encontrava. Porém denunciava desejo profundo daquela para quem o traste prometeu o mundo e deu apenas desgosto. E isto era perigoso: revelava a possibilidade de vidro moído, de estricnina, de formicida, essas coisas simples que detonam a vida, não importa a saúde que se tenha.
E o traste era forte. Bebia como ninguém, dissipava a vida com a sem-cerimônia de mil palhaços. E deixava a zinha, a pobre coitada a quem um dia prometera a fortaleza de seus braços, sozinha com suas dores, seus remorsos.
Mas o traste também era poeta, cometia rimas, boêmio que era, amante das madrugadas. E pegou papel e lápis, ainda sob o efeito da noitada, com sua verve bastante afiada, urdiu mal traçadas linhas com estes versos:
Senhor, não lhe concedas nada!
Mantém esta alma atribulada
do lado de cá do Rio Estige.
Se hoje estou mal,
ontem não estive.
Se hoje estou ébrio,
amanhã estarei sóbrio.
E, caso me transformes num defunto,
prometo por todas as coisas deste mundo
não desencarnar da minha casa,
do meu corpo, da minha amada,
essa pobre mulher que me suporta.
Mas, se tu julgares tudo isto uma besteira
e resolveres por um momento atendê-la,
prometo que a assombrarei a vida inteira.
E com cuidado amassou o papel em que escrevera. Jogou-o na lixeira, da mesma mesa de cabeceira, e foi deitar-se feito um porco. Roncou o que podia e não podia e, no outro dia, acordou bem tarde.
Era sábado, dia sem trabalho. Levantou-se, lavou-se, penteou-se. Quando voltou os olhos sobre a mesa, viu outro papelucho amarrotado, diferente do que lera. Desamassou-o com cuidado. Com letra trôpega, marcas de lágrimas pingadas sobre as linhas tortas, leu os versos em resposta.
Senhor, se arrependimento matasse,
morta estaria
por desejar a morte do coitado.
Ele me ama,
só é vadio.
E, como o boêmio que ama a noite e a cantoria,
volta pra casa sempre alterado.
E só agora
e não anos atrás
é que descobri que, depois da boemia,
é de mim que ele gosta mais.
Quando o traste chegou à cozinha, para o frugal café da manhã, tocava na radiovitrola da sala A volta do boêmio.
Beijou a face de Luzia, sob a réstia de sol que adentrava o lar sagrado, palco de sua paixão, e rodopiou com ela pela cozinha, nos passos do velho samba-canção.
“Aqui me tens de regresso.”
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Versos incidentais de A volta do boêmio, de Adelino Moreira. Adjetivação de fundo colhida em boleros e samba-canções.
É... quando a coisa aperta, ao invés de dançarmos um tango, soa mais romântico um bom e velho bolero.
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