(Para meu pai, Argemiro, com seus 94 anos.)
Meu pai teve a bicicleta mais bonita do mundo, segundo meu insuspeito julgamento de menino. A melhor! Era uma Humber, inglesa, pintura toda preta, quadro duplo, selim de couro, garupa, farol. Toda original.
Ele a comprou de um desses vendedores ambulantes, um caixeiro-viajante que, um dia, chegou a nossa vila levando sobre seu caminhão, dentre as várias mercadorias, a bicicleta. E ela se tornou sua companheira sempre que ia pescar no Rio Itabapoana, que fica próximo.
Meu pai mesmo, hoje, não se lembra do preço que pagou por aquela máquina maravilhosa, mas foi um preço baixo, para o encanto que ela causava nas pessoas.
Eu tinha orgulho por meu pai possuir uma bicicleta como aquela, desejada por todo mundo. Não havia ninguém que a visse que não tivesse palavras elogiosas. Era robusta, de uma beleza sóbria, acho que até mesmo sisuda, feita com materiais nobres e, ainda por cima, com a pintura original de fábrica. Por aquela época, até mesmo as bicicletas eram importadas.
Quando, finalmente, fiz doze anos, meu pai chegou para mim e disse:
- Agora você já pode andar na bicicleta. Sua perna já passa sobre o quadro. Pode pegar e andar.
Criança tem muitos dias felizes na vida. Este, certamente, foi um deles.
Eu já havia aprendido a andar de bicicleta, algum tempo antes, com meus primos Célio, Fernando e Paulo Gilberto, todos Machado como eu, mas meus primos de segundo grau. Paulinho, mais velho que nós, resolveu me ensinar e usou a bicicleta infantil de Celinho e Fernando. Montei sobre ela, e Paulinho me deu um impulso forte. A bicicleta se dirigia para uns tambores de gasolina que estavam na pracinha de chão batido. Fiquei apavorado. Na iminência de me estatelar contra os tambores, girei o guidão instintivamente para a esquerda e continuei pedalando, como ele me instruíra. E assim aprendi a andar. No susto! E nunca mais caí, nunca mais desaprendi.
Deste modo, quando meu pai me autorizou, peguei a bitela no quarto em que ela ficava e saí solenemente pela porta lateral da casa. Naquele momento, eu tinha ultrapassado certos limites e tinha plena consciência disto. Ele ainda recomendou, zombeteiramente:
- Se for cair, caia embaixo dela, porque a pintura é original. Se você se ralar, o Zé da Farmácia dá jeito. Mas a pintura, só na Inglaterra!
E eu sabia que a Inglaterra era longe à beça, já que era aficionado por mapas, gosto que ele também me passou.
Deste modo, passei a fazer parte de um grupo de meninos e suas bicicletas maravilhosas, que gastavam parte de seu tempo desfilando em frente à casa de três irmãs bonitas, amadas por todos os garotos e jovens da vila: Marieta, Lenilda e Josélia, também irmãs de nossos colegas de escola Zito e Ronaldo.
Para desfrutar dela, havia duas recomendações que deveria seguir: jamais andar sobre as calçadas, destinadas às pessoas, e nunca carregar alguém na garupa, zelo exagerado de meu pai com sua máquina.
Ilustração de Suelen Dias (em suedias.blospot.com). |
Nas horas em
que não estava pavoneando-me para Marieta, a mais novinha das garotas, saía a passear com minha irmã
Cristina, então com dois anos, que ia sobre a cadeirinha feita por meu pai e
fixada sobre o quadro.
Quando a
montava, era como se eu próprio fosse um dos meus heróis dos gibis da época:
Zorro ou Cavaleiro Negro. Eles com seus cavalos fogosos, eu com minha garbosa
bicicleta importada.Até que chegou um dia em que um desses invejosos de sempre, que o mundo produz aos milhões, foi até Carabuçu, para conhecer a bicicleta Humber do Argemiro, uma joia já famosa em Bom Jesus do Itabapoana, por referências de terceiros.
Olhou, gostou e se apaixonou por ela. Disse que meu pai botasse preço. Papai não queria vender, mas ele mesmo, espírito meio cigano, era negociante, tinha seu comércio de secos e molhados e, nos intervalos, fazia negócios com passarinhos. Para não vender e espantar o outro, pediu um valor exorbitante: doze mil cruzeiros.
Era 1959. O valor pedido era praticamente o de um fusca usado. E Dario, dono de uma cerâmica na cidade, concordou com o preço pedido, sem regatear. O negócio estava fechado. Traria o dinheiro daí uns dias e levaria a Humber.
Disso, contudo, eu de nada sabia.
Certa manhã, papai me manda ir até a casa da tia Toninha, pegar minha irmã, que lá ficara no fim de semana. E disse, em tom grave, palavras de que jamais me esqueci:
- Aproveite, que é a última vez que você vai andar nela. Eu a vendi para o Dario, de Bom Jesus, e ele vem pegá-la hoje.
Percorri os doze quilômetros de ida e volta da vila até a Fazenda do Jacó, chorando.
Até aquela altura da minha vida, nunca tivera uma perda tão grande, tão dolorosa.
Tempos depois, ao ir a Bom Jesus, fiz questão de conhecer a cerâmica daquele maldito comerciante endinheirado, que comprou o meu encanto de menino. Ele não estava lá, mas a bicicleta sim. E a única coisa que pude fazer foi olhar para ela, impotente.
De lá, de onde estava, ela nem viu minha tristeza irremediável!
O amigo lusitano José Varzeano (Alcoutim Livre e Correio das Lembranças aí ao lado) enviou-me por e-mail o comentário que reproduzo a seguir:
ResponderExcluir"Caro Saint-Clair:
[...]
Gostei muito do seu texto sobre a bicicleta e fez-me recordar a minha aprendizagem e o facto de ter utilizado muito esse meio de transporte. O meu avô paterno abriu a 1ª oficina de bicicletas na cidade de Santarém e transmitiu a arte a dois dos seus filhos, em que não se incluía o meu pai. Nunca tive uma bicicleta mas tinha sempre bicicletas para andar. Quando aprendi fui fazer um recado a minha mãe, comprar sal com uma tijela - resultado - parti a tijela e espalhei o sal pela rua que era térrea! Não sei como não apanhei daquela vez!
É muito bom ainda ter pai. O meu, o meu melhor Amigo, partiu já lá vão 34 anos.
Um grande abraço do
JV"
Bicicleta é um daqueles amores que verdadeiramente saúda a liberdade e a autonomia. Além de ser um objeto extremamente elegante. Ninguém é feio pedalando uma bicicleta.
ResponderExcluirÉ verdade, Paulo Laurindo. Nunca vi pessoa feia pedalando!
ResponderExcluir