3 de março de 2012

CARMOSINA VESTE LUTO

Imagem em noticias.uol.com.br.

No carnaval, Carmosina vestia luto fechado. Não que tivesse morrido alguém de suas relações próximas ou distantes naqueles dias. Tudo por causa do marido, defunto antigo.

Durvalino, o nome do dito finado, era chegado a um carnaval como ele só. Tocavam as seis horas da tarde de sexta-feira e ele só ia dar as caras em casa à meia-noite da Terça-feira Gorda, nem um minuto a mais, como fazia questão de frisar, para respeitar o luto fechado da Quarta-feira de Cinzas. Porque também era devoto de todas as cerimônias religiosas que se impunham aos fiéis.
Assim, tirado o pó da cara, curada a ressaca, voltava ele contrito ao lar e ia às práticas religiosas tradicionais na matriz da cidade, sempre de braços dados com Carmosina, que com seu véu preto, próprio das mulheres casadas, acompanhava compungida a imposição de cinzas. Saída da igreja, a mulher instaurava em casa um regime severo de mortificações da carne. Não havia sexta-feira, durante toda a Quaresma, em que entrasse carne de sangue em sua casa.

Cobria os santos que tinha espalhados pela sala com o pano roxo que se via também na igreja e, todas as noites, orava com o marido, que já se esquecera de Chiquita bacana e outras marchinhas sem-vergonha, do período de farras e esbórnias.
Como o marido se prestasse a esse duplo papel – acender uma vela ao Diabo e outra a Deus, com a mesma sinceridade –, ela não punha empecilhos a que ele se divertisse. E ainda retrucava com impaciência a alguma observação mais maldosa que se fizesse a respeito dele.

- Durvalino gosta mesmo é de se divertir com o carnaval. Inocentemente! Não passa pela cabeça de Durvalino nada além de Mamãe eu quero ou Se a canoa não virar. – dizia ela com segurança.
Por isso é que, desde que o marido partira para brincar o carnaval no Além, Carmosina, em sinal de veneração àquela alma festeira, vestia-se de luto pelo mesmo período em que ele desaparecia atrás dos blocos de sujo pelas ruas da cidade.

Nessas ocasiões, contentava-se em ouvir, de uns e outros, informações sobre o paradeiro do marido:
- Vi seu marido na pracinha, segurando o surdo do bloco.

- Durvalino estava vestido de pirata da perna de pau lá pros lados da Volta da Areia.
- Dona Carmosina, vi seu Durvalino de penico na cabeça no baile do Tupi.

E assim, de notícia em notícia, ia armando, já por aquela altura, uma espécie de GPS do trajeto que Durvalino fazia pela cidade.
Não era estranho que ela não o visse, porque praticamente não saía de casa, e ele também se esquivava de passar diante dela.

- Não gosto dessas reinações folionas. – dizia com um sorriso quase sério – Isto é coisa para Durvalino, que não se cansa de esperar o carnaval durante todo o ano, coitado dele. – completava ela.
E aproveitava a folga que o marido lhe dava, para pôr em dia as encomendas de tricô e marca que fazia com perfeição. No final do carnaval, todas as encomendas que recebia desde o Natal já estariam prontas. Assim seu período carnavalesco era uma espécie de retiro, não o espiritual, mas um retiro de trabalhos manuais, sem atropelos e sem encargos. Ela sabia que o seu Durvalino estaria de volta no último minuto da terça-feira. Isto era sagrado.

Por isso é que, quando ele morreu durante o desfile do Bloco Carnavalesco Rola Cansada, que saiu do bar do Salim ao meio-dia em ponto do sábado, em direção ao Bairro Novo, onde haveria um churrasco carregado no colesterol, resolveu que, em sua homenagem, usaria luto fechado em todos os carnavais doravante.
E, em todos eles, a partir daquele fatídico, em que parou o coração de Durvalino já encharcado de cerveja quente e doses maciças de cachaça Providência, que ele bebia dizendo “Vou tomar uma providência na vida” – e virava o copo –, resolveu por esse tipo de homenagem.

E, em todos eles, sentia que o espírito desacorçoado do finado rondava a casa, das seis horas da tarde de sexta-feira à meia noite de terça para quarta.

Na Quarta-feira de Cinzas, o espírito de Durvalino dava um refresco, para só voltar no próximo carnaval, assim que Carmosina pusesse aquele mesmo vestido preto, lavadinho, passadinho, engomado e cheirando a flor de laranjeira.

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