16 de março de 2012

A MÃO QUE VIBRA O FACÃO

No princípio, o casamento seguia por uma alameda de chão batido, cercado por canteiros de perfumosas flores silvestres, sob um céu sem nuvens. Um tempo depois, o caminho se estreitou em trilha, em que apareceram cascalhos, pedregulhos e uma que outra poça de lama, com tufos de vassoura e capim guiné à margem, e nuvens escuras no horizonte. Agora, isto já há alguns anos, com tempestades com hora marcada no finzinho da tarde, começo da noite, a trilha se fechou numa picada de mata intrincada, cipoal medonho, de vencimento só possível a poder de facão de mateiro.
Pois foi o que fez!
Sem pensar nos filhos e nos netos, pegou o facão de mato do marido, guardado em cima do guarda-comida na cozinha, e retalhou o miserável, enquanto ele dormia como um pudim de cachaça, espalhado pela cama.
E ficaram espalhados por lá os pedaços do outro. Impiedosamente. O colchão virara uma plasta de sangue, num espetáculo mais pavoroso do que quando matava porcos.
Imagem em clientes.netvisao.pt.
Ela jogou o facão sobre aquele monte de retalhos humanos, lavou suas mãos com a água fresca da cacimba que ficava nos fundos da casa. A roldana que fazia o balde descer e subir ainda tocou um canto meio chorado em suas engrenagens gastas, incapaz, no entanto, de a fazer sentir remorsos.
E se arrumou calmamente para sair.
Fez a mala. Uma velha mala de papelão reforçado, sustentada por tiras de couro que terminavam em alça, com cantoneiras de metal já enferrujadas, fixadas com arrebites. Não havia muitas coisas a levar. Apenas algumas peças de roupa, um vidro de extrato barato que ganhara de um dos filhos na última visita que ele lhe fizera, há coisa de uns três meses, e o pente de dentes largos, com que desembaraçava seus cabelos crespos.
Foi para a estrada esperar o auto – como na vila chamavam o ônibus – e seguiu viagem, de baldeação em baldeação, em direção a Resplendor, onde morava uma irmã um pouco mais nova.
Não foi difícil ser encontrada pela polícia, tão logo os vizinhos perceberam que, por três dias, não saía mais fumaça da chaminé da casa simples, um pouco distante, no meio de uma plantação de milho ainda incipiente, onde o casal quase que se escondia dos outros.
E o deslinde começou quando Nicanor resolveu ir até a casa do amigo Isaías, para assuntar o motivo do sossego. Assustou-se com a cena e o fedor que já se anunciava bem antes de entrar.
O quarto onde os retalhos de Isaías fediam estava com a porta encostada, e Nicanor teve um gesto brusco de fechar os olhos e cobrir o nariz com sua mãozona de agricultor miúdo, habituado ele mesmo à dureza de tratar a terra difícil. Voltou a abrir a porta, que deixara bater pelo balanço das dobradiças, para se certificar de que era realmente seu velho amigo Isaías das conversas animadas, do carteado, das lapadas de pinga durante os fins de semana, agora coberto por moscas varejeiras.
Apavorado correu até sua casa, para comunicar à mulher o que vira, arriou a mula e foi para a vila, atrás da autoridade policial.
Como sempre, sem nada a fazer, o subdelegado jogava uma partida de sinuca no bar do Ébio e gostou de saber da novidade, que daria a ele alguns dias de trabalho, para elucidar o crime, como gostava de dizer, leitor inveterado que era das peripécias de Sherlock Holmes e seu fiel escudeiro Dr. Watson. Ele também tinha seu parceiro nessas empreitadas: o cabo Fala-fino, alcunha maledicente, mas que dava bem a ideia de como o Cabo Antônio Paixão falava. Apelido, aliás, que não lhe era dito na cara, pelo risco de se levar um tiro pelas platibandas.
Os dois partiram a cavalo, em companhia do Nicanor.
O crime tinha ocorrido para os lados das terras da família Romualdo, cheia de gente, sobretudo homens, que falavam grosso, cultivavam bigode largo, lustrado a poder de Loção Pindorama do Brasil, e gostavam de andar de palito de dente no canto da boca, a cabeça coberta por chapéu de feltro amarronzado. Gestos e hábitos que pareciam marcas registradas dos Romualdo.
Nicanor e Isaías eram vizinhos dessa gente de trato difícil, cheia de quizílias, mas viviam na paz, porquanto suas terras fossem bem menores, de não fazer frente à atividade pecuária leiteira daqueles uns.
Quando, enfim, chegaram à casa de Isaías, os homens da lei já adentraram o recinto com o lenço amarrado por cima do nariz, em parecença de antigos bandidos dos gibis em preto e branco que a meninada lia na farmácia do Zé Resende.
Ivo Pereira, esse era o nome do subdelegado, resolveu enterrar ali mesmo o que sobrara do desgraçado e voltou à vila. Lá redigiu um relatório circunstanciado, na primeira pessoa do plural – o tal plural majestático –, como convinha ao caso, e o assinou juntamente com o cabo Fala-fino, a fim de que não houvesse contestação ao enterro que promovera ao arrepio da lei, segundo suas palavras, “em função do adiantado estado de putrefação em que se encontrava o de cujus”. Encaminhou-o ao delegado da cidade, indicando a autora, para quem solicitava o indiciamento pela barbaridade cometida.
Ofício vai, ofício vem, a polícia do estado de Minas Gerais providenciou a captura de dona Isolina Feitosa da Assumpção, viúva e assassina de Isaías Antunes dos Anjos, e a enviou, sob escolta, para que as autoridades de Bom Jesus dessem seguimento ao processo crime.
Quando a reluzente Rural Willis com a placa MG parou diante da delegacia, já havia um punhado de curiosos, aguardando a chegada da monstra, como diziam alguns.
Seus cinco filhos homens, na faixa de vinte a trinta anos, estavam no interior do prédio e viram sua mãe chegar com os punhos amarrados para trás, com uma corda. O mais novo chorou disfarçadamente. Os outros estavam atônitos.
Quando, por fim, Isolina foi levada a júri, e falou de viva voz sobre o inferno em que sua vida se transformara, depois que o último filho deixara a casa, a audiência, o júri e até o promotor encarregado de pedir a condenação ficaram sensibilizados.
Não houve uma testemunha que lhe desdissesse a mínima palavra. Algumas, inclusive, ainda reforçaram as tintas das atrocidades que o marido despejava sobre ela.
Ao final de dois dias de julgamento, e com base numa tal de legítima defesa subjetiva, combinada com a legítima defesa sucessiva e uma esquisita obnubilação dos sentidos, Isolina foi absolvida e saiu do prédio do fórum pela porta da frente, sob o aplauso de uma pequena multidão, que jamais tinha ouvido falar em feminismo e outras coisas mais que a modernidade inventaria, daí mais um tempo, para proteger as pessoas.
Seus filhos e netos, porém, nunca mais lhe tomaram a bênção, nem lhe beijaram a mão, como sempre faziam quando chegavam e saíam de sua casa. A mão que vibrou o facão estava condenada em família.
E ela ficou sem ter a quem abençoar.

Um comentário:

  1. Conto escrito com giz de cera, graúdo. Síntese primorosa o primeiro paragrafo.

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