14 de março de 2012

LOURDINHA NA PRAÇA TIRADENTES

Quando Lourdinha botou os pés na Praça Tiradentes, Juscelino Kubitschek tinha acabado de inaugurar Brasília. Assim ela já pegou a cidade destituída de sua nobre função de capital da república, mas nem ligou para isso. O Rio continuava exatamente igual ao que era, inclusive até com certa efervescência política, com muitos funcionários federais aborrecidos por deixarem a praia e o samba, para ir trabalhar num descampado onde nem esquina havia, portanto sem bares e botequins.
E, de início, passeando com Prudêncio por alguns lugares, enquanto ele procurava uma colocação, que era o jeito interiorano de nomear emprego, em alguma padaria das imediações da Praça, é que se foi inteirando do maneirismo carioca, foi-se afeiçoando ao costume de falar chiando o s de festa, por exemplo. Ela achava isto muito chique e procurava sempre imitar, desde quando ouvia seus programas prediletos da Rádio Nacional em sua abandonada casa da vila de Liberdade.
Agora, ali, enquanto aguardava Prudêncio voltar do escritório, puxava assunto com um e outro no balcão do cafezinho, para ouvir mais e mais, a fim de que, rapidamente, assumisse o sotaque carioca. Na cola de tais conversas, sempre aparecia um homem mais atirado, a tentar algumas possibilidades, imaginando tratar-se de uma das moças das calçadas.
Lourdinha, aos poucos, percebeu o trabalho de tais mulheres e a confusão que a sua presença um tanto constante por ali produzia, sem que com isso se zangasse. Até achava interessante, excitante mesmo, ser confundida com uma delas. Então comentava com Prudêncio. E ria de sua cara feia. Ele não queria saber de mulher sua facilitando as coisas para outros. Nesses momentos, toda vaidosa do ciúme que despertava, dizia com satisfação que “o que é do homem o lobo não come”.
E, na peregrinação que empreendia, aos poucos Prudêncio ia perdendo o controle sobre Lourdinha, para quem a vigília constante era uma necessidade. Sua lubricidade não era coisa de se deixar sem cadeado de segredos, ou, em pouco tempo, tudo se iria perder.
E foi o que acabou ocorrendo.
Numa dessas saídas, por indicação do atendente do bar onde tomavam o café da manhã, Prudêncio se dirigiu a Botafogo, à cata de vaga de trabalho numa das primeiras pizzarias do Rio de Janeiro, instalada na Rua da Passagem.
Demorou-se por lá e, ao chegar, encontrou Lourdinha de conversinhas de pé de ouvido com certo tipo suspeito – topete alto emplastrado de brilhantina, bigode reto por cima do beiço e costeletas pronunciadas –, segurando entre os dedos de unhas envernizadas um cigarro alongado por uma escandalosa piteira negra, com detalhes dourados.
Pegou pelo seu braço e exigiu que o acompanhasse até o quarto do hotelzinho barato que ocupavam na Rua do Lavradio, desde que desembarcaram na cidade.
Contrariada, ela o acompanhou e, doravante, não mais se entenderam, até o dia em que ela arrumou sua mala, desceu as escadas de madeira, batendo o salto da sandália, e ele a viu, lá embaixo na calçada, encontrar-se com o tal tipo.
Duas semanas sumidas, encontrou-a, depois, com roupas sensuais, cara provocantemente pintada, fazendo ponto junto à Gafieira Estudantina, o tipo a dez passos de distância, mantendo a vigilância sobre sua nova fonte de renda.
Ele se aproximou. Ela tremeu. Derrotado, ele lhe perguntou pelo preço do programa. Era um valor que não podia pagar – seu dinheiro já começava a minguar – por aquilo que já fora seu sem favores, graciosamente.
Prudêncio baixou a cabeça, envergonhado, fingiu que limpava um cisco que lhe caíra ao olho, deu meia volta e atravessou a Praça Tiradentes, chorando como menino novo quando perde seu brinquedo favorito.
Lourdinha nem percebeu. Apenas colocou na piteira negra exageradamente longa, com detalhes dourados, o cigarro que mal aprendera a fumar. Ajeitou o cabelo e deu um passeio triunfal, sob o som da orquestra que atacava um bolero naquele exato momento: “Espérame en el cielo, corazón, si es que te vas primero”.

Audrey Hepburn, em Bonequinha de luxo, 1961, filme
de Blake Edwards (cineinblog.atarde.com.br).
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Veja, também, as histórias correlatas: As trovas de Anunciata e Lourdinha fugiu para o Rio de Janeiro.

Um comentário:

  1. Muito bom. O amigo criou uma atmosfera e uma expectativa com relação ao destino desta novela.

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