11 de março de 2012

CORDEL SEM RIMA: O DIA EM QUE SARNEY CHEGOU AO CÉU

Até que, um dia, Sarney foi bater às portas da Eternidade. Não que tivesse morrido, pois ele é simplesmente imorrível. Mas é que os tempos chegaram ao fim, como previram visionários diversos, desde que os tempos se iniciaram. Um dia, com certeza, isso iria acontecer. Tudo que tem um princípio tem um fim! Até um gostoso pudim de leite.
Assim, até mesmo ele, Sarney, o imortal, chegou diante do guardião do tempo e da vida. Chegou abruptamente. Não teve tempo de pintar os cabelos e o bigode, de modo que foi confundido por São Pedro com personagem do Velho Testamento, aparentado de Matusalém.
O velho santo viu, porém, que aquilo não era um avantesma. Era de carne, osso e jaquetão trespassado, de seis botões, até provavelmente portando seu cartão de CPF.
O momento se fazia solene! À ocasião, compareceram Lúcifer e uma súcia agitada de demônios menores, a fim de disputar com o santo o destino final dos humanos, para cumprir a tal escatologia bíblica. Sempre tendenciosos, os dois! São Pedro, bonachão, tentando ver virtudes em alma encardida; Lúcifer, simulado, jogando lama sobre almas alvejadas.
E Sarney ainda chegou acompanhado de um séquito de puxa-sacos, que ele insistia em chamar de base aliada e correligionários, “povo da primeira hora”, em suas palavras. Marimbondos de fogo, vindos diretamente do brejal dos guajas, contornavam sua figura impoluta e vaidosa, malgrado a inelutabilidade do momento.
Imagem obtida em patriciojr.com.br.
São Pedro, sem a pressa dos paulistas, mas com a pachorra dos baianos, abriu o livrão da eternidade, cuja escrita mantinha em dia, apesar do assoberbamento da hora final, e começou a entrevista definitiva, para que apurasse o resultado de débito e crédito.
- Senhor José Ribamar Ferreira Araújo da Costa Sarney – São Pedro é assim mesmo, formal –, em primeiro lugar, quero saber os motivos de o senhor ter construído um mausoléu para si, se sabia que era imortal? Isto não é desperdiçar dinheiro, num estado tão cheio de carências? Não é uma ostentação reprochável? – São Pedro também gostava de adjetivos inusitados.
- Data venia, Vossa Excelência – Sarney também é assim mesmo, formal –, mas é que eu queria deixar para o meu país uma marca indelével de minha passagem por aquela terra, apesar de o povo não merecer. Aliás, quero aproveitar a oportunidade desta solenidade, para reclamar do povinho que o Criador destinou àquelas paragens tão belas e catitas. – continuava Sarney a falar como o vate que era – Não poderia Sua Excelência – referia-se ele agora ao Criador – ter dotado meu país de noruegueses, de dinamarqueses, de alemães ou japoneses?
São Pedro interrompeu, porque sabia da lábia do político brasileiro.
- Um momento, senhor! Aqui quem está sendo julgado é o senhor e não a obra da criação. Sem questionamentos! E, só para não ficar sem resposta tal indagação, garantir-lhe-ei – a formalidade de São Pedro chegava até a mesóclise, apesar de todas as sugestões em contrário de Manuel Bandeira, em Irene no céu – que, se tal tivesse ocorrido, pessoas como o senhor jamais teriam chegado aonde chegaram. Continuemos!
Neste instante, houve um mal-estar generalizado na base aliada, que a tudo assistia com atenção. O zum-zum-zum teve de ser apaziguado pela interferência direta de uns arcanjos munidos de lanças compridas e afiadas. São Pedro aproveitou para informar àquela turba que ali só quem tinha base aliada eram o Criador e Lúcifer.  
Foi a dica que Sarney queria.
- Pois proponho a Vossa Excelência – Sarney conhecia o formalismo do velho santo – costurar um acordo entre as duas partes em conflito. Vejo que ali está o ex-adverso de Sua Excelência – novamente referia-se ao Criador – com seus partidários e julgo este o momento ideal a se pôr um fim às pendências entre as partes. Ambos já participaram do mesmo partido primevo, no episódio da fundação cosmológica. Estou convicto, nesta oportunidade, de que, atingida a maturidade de seus posicionamentos, é chegada a hora de ambos os lados se reunirem, na formação de um grande partido único a governar aquilo que resultar desta excelsa e peremptória assembleia. – Sarney também amava os adjetivos empoeirados.
A base aliada de Sarney não conteve a satisfação com o desempenho do chefe, e até se ouviram uns gritos de “apoiado”, vindos do meio da chusma.
- Desde, evidentemente, - continuou Sarney, diante de um São Pedro estupefato – que fiquemos com algum ministério no novo governo que se há de formar! Estamos prontos a colaborar desassombrada e desprendidamente!
Aí a base aliada não se aguentou e prorrompeu em aplausos entusismados. E, porque havia vários demônios presentes, a sessão perigou transformar-se num pandemônio dos diabos.
São Pedro, então, irritou-se e convocou mais algumas coortes de anjos e querubins das igrejas barrocas de Minas, para pôr ordem no recinto. E procurou ser taxativo com Sarney, contrariando seu espírito bonevolente, porque temia perder o controle da situação.
- Senhor José Ribamar Ferreira Araújo da Costa Sarney, – o santo não abria mão de nomear o réu com seu nome completo – o senhor se limite a responder ao que for inquirido.
- No entanto, Vossa Excelência, há de admitir a réplica e a tréplica, como é da norma do bom catecismo da democracia – disse o esperto político daquele estado do Nordeste.
Agora a pelegada que o acompanhava meteu o galho dentro, diante da presença de um número incontável de anjos, querubins e arcanjos. Os serafins, por seu lado, estavam organizando a fila dos outros nordestinos que aguardavam o veredicto inapelável. Para se ter uma ideia da barafunda que se formou, só de Severinos havia para mais de milhão.
- Isto aqui, senhor, não é uma democracia. Isto aqui é um reino, com um rei absolutista, teocrata por direito divino, que dita as regras e julga as criaturas conforme tais regras. Estou aqui tão-somente para aplicar as penas e os prêmios com justiça, porém sem recursos protelatórias e habeas-corpus mal-intencionados. E de modo definitivo, entendeu? Pois, então, me responda: por que o senhor fez da vida política brasileira uma mixórdia vergonhosa? – São Pedro parecia reproduzir a opinião pública daquele ex-país tropical, agora mergulhado no caos.
- Sabe como é, meu santo, – Sarney ia tentar nova estratégia retórica com o porteiro celestial – por mais que eu tentasse, durante muitos anos, aquele povo não queria saber de responsabilidades. Era bumba-meu-boi, era tambor de crioula, era pedra de responsa, era carnaval, era micareta, era parada gay, era futebol, era olimpíada, era cervejada, era churrascada, era praia. – Como político, Sarney sabia ser redundante e repetitivo. – Lá ninguém queria trabalho, ninguém desejava construir uma nação forte e altiva. Assim pensei eu: já que não tem jeito, o jeito é me locupletar. Eu quero o meu. E, como caridade começa de casa, comecei pelos meus. Deixei até meu estado natal para meus filhos, como um bom pai que sou. Isto há de pesar a meu favor, não é mesmo, meu santo?
- No quesito cara de pau, senhor! No quesito cara de pau! – São Pedro resolveu também popularizar a retórica celeste.
O borburinho voltou a aumentar. Nesse instante, Lúcifer pediu a palavra:
- Quero solicitar a esta corte o encaminhamento do réu aos meus domínios. Aproveito para rejeitar, de pronto, qualquer tipo de associação com o lá de cima, de quem me tornei desafeto desde antes de Adão e Eva. Não quero enredo com ele. Porém o nobre político aqui presente será muito útil em meus domínios. Tenho até um ministério reservado para ele e sua base aliada, que lá nos meus domínios é reconhecida e aprovada.
Sarney, que não podia ficar sem participar do poder, fosse este qual fosse, neste momento não titubeou. Aceitou de pronto a oferta que lhe fazia o Rei das Trevas, o dito Cramulhão, e logo pensou em nome a indicar para o cargo de ministro, mantendo-se ele, como de praxe, no conselho do diabão, que era o seu melhor papel: dar maus conselhos a quem se dipusesse a ouvi-lo.
Então, com um estrondo infernal, Lúcifer abriu com sua lança um buraco no tempo-espaço, e Sarney e toda a sua base aliada se precipitaram na crepitância dos fogos e fornos eternos, para nunca mais.
Amém nós todos!

3 comentários:

  1. Como se vê, o bigode gosta mesmo de uma encenação. Afinal é sabido que, tendo o Criador recusado por dois tostões sua alma, de há muito já havia fechado acordo por um com o demo.

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  2. Só pode ter sido isto, Paulo Laurindo. Mas os dois se merecem!

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  3. Mestre, que beleza! Mandou o Sarney para o inferno vivo. És um gênio!

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