25 de agosto de 2011

DONA SELMINHA SAMBA AOS SÁBADOS

Dona Selminha é o terror do escritório da firma sediada no Centro do Rio de Janeiro, na Rua da Assembleia, logo no primeiro prédio à direita de quem vai da Praça Quinze, aquele pretão.
Responsável pelos bóis, impõe ordens, exige comportamentos, atribui tarefas, como um marechal de campo em guerra declarada, o inimigo já submetido. Não quer saber de vacilos, de atrasos e desídias, o que deixa bem claro à equipe de cinco rapazes que voam pela cidade com suas motocicletas, a fim de cumprir rigorosamente suas determinações, em tempo hábil.
Indefectivelmente, está de terninho bem cortado, de cor neutra, cabelos amarrados em coque no alto da cabeça, sombra escura nos olhos, a fim de exagerar um pouco na seriedade dos seus bem fornidos quarenta e cinco anos.
Embora não tenha filhos, foi casada com o traste de um marido muito do sem serventia, que, num dia aziago de um agosto chuvoso há cinco anos, deu linha na pipa e foi baixar em outros cantos.
Ela ficou no ora veja, mas se deu por satisfeita na semana seguinte, porque era menos um a comer na sua mesa, a dividir a sua cama, sem proporcionar o prazer que deveria ter em casa, já que, no trabalho, é trampo desde que chega até não se sabe que horas, tudo conforme as exigências e as necessidades.
Armazém do Senado, onde Dona Selminha samba, localizado
na esquina de Rua do Senado com Gomes Freire, em 6/ago/2011,
No entanto, como nem tudo na vida de dona Selminha sejam apenas compromissos e aporrinhações com os motobóis, certo sábado resolveu conhecer a feira de antiguidades da Rua do Lavradio, encravada na boêmia Lapa, e chegou pela Gomes Freire. Ali, na esquina com a Rua do Senado, descobriu o Armazém do Senado e sua roda de samba de tirar defunto do IML com atestado de óbito. O Armazém do Senado vende bebidas e tremoços desde 1907 e já mandou para a emergência do Souza Aguiar muito fígado estropiado nestes mais de cem anos.
Saber se, até hoje, dona Selminha conseguiu chegar à feira é coisa difícil, pois foi caso de paixão ao primeiro ronco da cuíca na roda de samba. Agora, todo sábado sem chuva – pois a coisa se dá na esquina das duas ruas –, ela está lá, embalada a vácuo no seu vestido tubinho no meio da coxa, a deixar transparecer a calcinha asa delta mais escura, cabelos soltos precisando de um corte, fita larga a segurá-los na testa, requebrando e sacolejando as cadeiras num frenesi impensável na empresa. Ali, dona Selminha parece possuída e em nada lembra a mandona do escritório!
Pois foi no primeiro sábado deste agosto que um de seus subordinados diretos, o motobói Arlindo, a viu na batida do samba e não pôde acreditar. No meio da pequena multidão que se aglomera, desconfiou que fosse ela a coroa sapeca que só não ia ao chão no requebro, porque a roupa justa não lhe dava essa liberdade, não lhe permitia esse desfrute. Para se certificar de que era a própria, emaranhou-se por entre as pessoas, quase todas de copos à mão e cantando “sei lá, não sei; sei lá, não sei não; a Mangueira é tão grande...”, até que a pegou dando de cabeça para um e outro lado, de modo a balançar a vasta cabeleira ressequida, chegada numa tintura preta, como se fosse uma pomba-gira alucinada. E, embora fresca a tarde de agosto, tinha a pele marejadinha de suor.
- Dona Selminha! – foi o que Arlindo conseguiu dizer, observando o contorcionismo dela no samba, sem poder deixar de reparar no corpo ainda bem feito, nas pernas bem torneadas, nos joelhos bonitos.
Ela, com o sorriso mais simpático do mundo, retribuiu com um “oi, Arlindinho!” e aplicou-lhe dois beijos na face, como fazem os cariocas ao se cumprimentarem, sem em nada lembrar a chefe exigente do horário de expediente.
Arlindo não perdeu tempo – motobói é uma raça atrevida! –  e começou a trocar passes com ela, como que transformados em mestre-sala e porta-bandeira, e qual não foi sua surpresa, ao se dar conta que dona Selminha correspondia a todas as suas negaças, a suas sensuais insinuações de sambista, até ter coragem de segurá-la pela cintura, que ele sentiu firme em modelo de coisa trabalhada em academia.
Dona Selminha, um leve arrepio no corpo, retribuiu o gesto, contornando a cintura do motobói com firmeza. Em pouco tempo, estavam os dois ligeiramente afastados da aglomeração, combinando coisas, trocando seduções, que, sem mais aquela, passaram a beijos e amassos ao lado da obra de recuperação do prédio histórico em frente ao Armazém do Senado, inclusive com o risco de desmontar os andaimes de sustentação da fachada, tal a saliência do casal.
Dali para um hotelzinho acanhado na própria Gomes Freire não demorou cem passos. E Arlindo retribuiu a ela todos os recalques suportados nos dias úteis, com o vigor de seus vinte e poucos anos, pelo que dona Selminha ficou deveras agradecida, com promessas de estar naquela mesma esquina na próxima roda de samba. No entanto, para que não perdesse o cacoete de chefe, ao final, ao abotoar o sutiã bojo reforçado com arame, disse-lhe firme:
- Não vá abusar no trabalho, senão não tem samba, hem!
E, na segunda-feira a seguir, foi o primeiro a levar um arrocho da chefe durona, que lhe piscou o olho esquerdo furtivamente, sem que ninguém percebesse.
E estava estabelecido o acordo! Dona Selminha não poderia mais perder o samba aos sábados na Rua do Senado, onde sambava até mais não poder. Saravá!

2 comentários:

  1. É por estas e outras que se pode dizer que o amor encontra-se logo ali na esquina, é só uma questão de passar por ela.

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  2. Nada como um samba atrás do outro e umas ucas na cabeça. E lá se foi a Dona Selminha deixando "a vida me levar".

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