11 de janeiro de 2011

SOBRE PALAVRAS - NOVAS LUZES


Colhida em visioncultural.worpress.com.
Todos que me conhecem sabem que sempre fui um aficionado por palavras e pelo que elas representam para o ser humano. Acho mesmo que o que nos diferenciou dos demais animais é que criamos e desenvolvemos esse código de comunicação insubstituível, capaz de nos proporcionar todo tipo de uso, até mesmo com a finalidade aparente de não comunicar nada, como num soneto de Jorge de Sena (1919-1978), poeta português. Senão, veja só:

                                               AMÁTIA (Soneto 4 a Afrodite Anadiómena)
                                               Timbórica, morfia, ó persefessa,
                                               melaina, andrófona, repitimbídia,
                                               ó basilissa, ó scotia, masturlídia,
                                               amata cíprea, calipígia, tressa

                                               de jardinatas nigras, pasifessa,
                                               luni-rosácea lambidando erídia,
                                               erínea, erítia, erótia, erânia, egídia,
                                               eurínoma, ambológera, donlessa.

                                               Áres, Hefaistos, Adonísio, tutos
                                               alipigmaios, atilícios, futos
                                               de Lívia damitada, organissanta,

                                               agonimais se esgorem, morituros,
                                               necrotentavos de escancárias duros,
                                               tantisqua abrandimembra a teia canta.

                                               (José Lino Grünewald (org.). Grandes sonetos da nossa língua. 2. ed.
                                                       Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1987.)

Pelo texto, percebe-se que a maioria das palavras foi criada por ele apenas para o poema. Ainda que se possa sentir a sua motivação criadora, intelectualmente fica difícil penetrar-lhe o significado. Como a poesia é filha direta da música (nossas mais antigas poesias eram cantigas), sua sugestão maior é auditiva. É como se ouvíssemos uma música em língua estrangeira que não dominamos.
Mas os criadores de palavras não são apenas os poetas e os sábios. Todos os que falam a língua podem criar palavras. Há gírias novas, palavras que inexistiam há algum tempo e que hoje são usadas por certos estratos sociais.
Pensando nisso, é que me debrucei sobre algumas delas, para tentar saber que tipo de falante as criou. É bom que se diga, aliás, que nem os mais profundos estudos de Etimologia (estudo da origem das palavras) conseguiram tal proeza. Vou-me arriscar e seja o que o Aurélio quiser!
Palavras criadas por gagos, cultos ou incultos, daqui e do estrangeiro: vicissitude, paralelepípedo, soçobrar, pererecar, pururuca, murucututu, Titicaca, pipilar, ciciar, vivificar, tartamudear, tatibitate, titubear (Trabalhei com um gago que dizia, mais ou menos assim, ao pedir fogo para o cigarro: fa-fe-fi-fa-fogo!).
Palavras criadas por fanhos em geral, indígenas ou não, bêbados ou sóbrios: nhem-nhem-nhem (esse também era gago), Carinhanha, fanfarrão, Pindamonhangaba, Jequitinhonha, Anhangabaú, nhanjaçanã, mumunha, murundu, Bumbum Patricumbum Prugurundum (O Beto era sem braço, mas o Aluísio Machado*, que não é meu parente, talvez seja o fanho.), nhambu, nhambuanhanga, etc. e tal.
Palavras criadas por quem não tinha nada que fazer, a não ser atrapalhar a vida dos demais falantes: idiossincrasia, estafilococo, ipecacuanha, superstição, antroponímia, ambliopia, antropomórfico, abespinhamento, acantoquitoninos, descoroçoado, dodecafônico, esquistossomose, sesquitepernoide (e quase todos os vocábulos científicos da área de Anatomia, Química e quejandos), octingentésimo (e todos os numerais ordinais acima de décimo; veja esse exemplo: 51ª Delegacia de Polícia, que o vulgo diz “cinquenta e uma Delegacia de Polícia”). Um desses desocupados é o Millôr Fernandes. Confiram só o soneto dele (está lá no Saite do Millôr, em uol.com.br):
Penicilina puma de casapopéia
Que vais peniça cataramascuma
Se parte carmo tu que esperepéia
Já crima volta pinda cataruma.

Estando instinto catalomascoso
sem ter mavorte fide lastimina
és todavia piso de horroroso
e eu reclamo - Pina! Pina! Pina!

Casa por fim, morre peridimaco
martume ezole, ezole martumar
que tua para enfim é mesmo um taco.

e se rabela capa de casar
estrumenente siba postguerra
enfim irá, enfim irá pra serra.

Palavras criadas por falantes com mania de grandeza, cheios de nós pelas cordas vocais: oftalmotorrinolaringologista, inconstitucionalissimamente, anticonstitucionalissimamente e algumas palavras da indústria farmacêutica, designativas de medicamentos, que nem consigo aqui transcrever, sem dar um nó nos dedos.
Palavras criadas por preguiçosos de toda laia, nacionais ou não (Com mais de vinte e três consoantes e não sei mais quantas vogais, ficar só nisso é muita preguiça!): ar, ás, bá, dar, dó, fé, rir, ser, ver, lá, ler, ló, pé, pó, pai, mãe, vó, vô, mel, mó, fel, só, sé, nu, eu, tu, ele, nós, vós, eles (e muitos pronomes pessoais átonos e tônicos), dentre outras.
Palavras e expressões criadas por falantes bem nascidos, cujo único objetivo é atrapalhar falantes pobres e, assim, manter essa dicotomia social condenável (a versão pobre vai entre parênteses): artrose e artrite (astrose e astrite), estômago (estromo), próstata (prosta), catástrofe (catasfre), problema (poblema, pobrema, probrema, ploblema), mortadela (mortandela), em mim (ni mim), em nós (ni nóis), opta (opita), saltar do ônibus (soltar do ônibus), que pernas! (ques perna!) e assemelhadas, entre mim e ti (entre eu e tu), caderno (cardeno), caderneta (cardeneta), lagarto (largato) lagartixa (largatixa), aeroplano (arioplano), aeronáutica (arionáutica), bicarbonato (bicabornato), insolubilidade (trem sem jeito, sô!) polícia (puliça), menor de idade (dimenor), varia (vareia), vive (véve), somos nós (é nóis!), como vai você? (aí, mano, firmeza?). E por aí vai!
Palavras e expressões criadas por pedantes para confundir o falante mediano, que pensa que há uma forma diferente (entre parênteses, a forma presumida): rubrica (rúbrica), privilégio (previlégio), cumprimentar (comprimentar), basculante (basculhante), trazido (trago, em: Ele tem trago presentes pra mim.), extrair dente (distrair dente), comprar um fogão (tirar um fogão), menos dívidas (menas dívidas), para eu fazer (pra mim fazer), pode vir (pode vim), se você vir (se você vê).
Palavras criadas por falantes sacanas, cujo objetivo é colocar maldade na cabeça do falante inocente: abundância, abundar, cubelo, cubiú, cuscuz, enxequetar, picadão, picadura, piçamá, pintada, puço, pudente, pudibundo, pudicícia, pudico, xereta.
Para não me alongar demais nessa demonstração do que pude colher, destaco mais duas palavras, que passavam distraidamente em frente ao meu laboratório etimológico e cuja estrutura é formada pelo chamado processo de composição de palavras, isto é, com a junção de mais de uma. Vejam só:

Reivindicar – indica que Sua Majestade não virá de bus, nem de ship, muito menos de plane, mas de car, de automóvel (naturalmente com capota escamoteável e cheio de seguranças). Vejam aí, inclusive, já a presença da língua de Shakespeare a botar suas unhas de fora.
Ancestrais – mineiro querendo confirmar se os parentes que o vêm visitar vão, de fato, trazer o leitão que combinaram. Em português culto, deveria ser uma frase: Ãh, vocês trazem? Mas mineiro tem mania de juntar tudo, igual a alemão, que diz apfelstrudel para folhado de maçã.
Espero que esses apontamentos tenham trazido mais ilustração para o seu já rico cabedal linguístico. Tenho dito!
(* Desculpe a brincadeira, grande Aluísio Machado, um dos maiores vencedores de sambas-enredo do Salgueiro!)

3 comentários:

  1. Mestre, muito bom, mas li não me lembro onde, que nhem-nhem-nhem foi uma expressão criada pelos nossos indígenas para se referir ao falar dos portugueses, é verdade?

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  2. É exatamente isso, Zatonio. Boa parte das palavras que eu, humoristicamente, atribuí aos fanhos é, na verdade, de origem tupi, que é uma língua cheia de sons nasais.

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  3. Quem foi que disse que palavras não possuem personalidade? Bela sacada! Dá muito pano pra manga.

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