23 de janeiro de 2011

MARIA, MARIA


Namoradeira, por Rosilene Miranda,
em telejm.blogspot.com
 Maria nasceu com a estranha mania de ter fé na vida. Desde muito pequena acreditava em tudo que lhe diziam, por mais estapafúrdia que fosse a versão apresentada. Por isso não é estranho que tenha passado a, diuturnamente, consultar horóscopo, ler bula de homeopatia, fazer todas as simpatias que ouvia nos programas de rádio matutinos, sem o que não punha os pés fora de casa.

Acreditava tanto que acreditava em político, videopastor, em previsão de tempo, em resultado de consulta a cartomante, quiromante, e, o mais grave, no papo-furado do Marivaldo, aplicador de injeções da Farmácia Santa Isabel, estacionada na Rua Direita, pertinho da Praça das Mães.

Isso aconteceu num dia em que precisou de injeção que lhe curasse forte gripe pega de surpresa, numa noite friorenta de São João.

Marivaldo, quando recebeu a visita de Maria na farmácia onde espalhava sua competência de furador de braços, veias e popas, logo se entusiasmou em atender a moça que chegava com o incômodo da gripe. Ele mesmo receitou a injeção, mas ponderou que, a par de ser muito eficaz contra a doença, doía que só ela, pelo que recomendou que a zona em que deveria ser aplicada fosse mais abastecida de carnes do que o magrelo braço de Maria.

Ela ficou muito acanhada com a situação, mas acabou cedendo suas partes para que Marivaldo ali depositasse o remédio milagroso.

Quando a ingênua e crédula moça suspendeu o vestido e baixou a calcinha, mostrando sua popa morena, coberta por uma penugenzinha suave como a brisa de maio, Marivaldo olhou para cima e agradeceu aos céus a oportunidade que se apresentava em sua vida. Visse ela a cara do aplicador de injeções e teria saído desembestada da botica, sem tempo de se recompor. A sanha dos olhos de Marivaldo, sem querer desmerecer outros monstros, era a de Nosferatu em seus piores dias.

O algodão embebido em álcool que passou sobre o murundu de Maria provocou na moça uma friagem gostosa e estranha. Era como se Di Cavalcanti estivesse retocando pintura de mulatas, tal foi a habilidade no serviço. Em seguida, com a mão nua, sem ajuda de luva, segurou de mansinho parte do tesouro que se lhe oferecia e teve pena de chuchar agulha em região de delicadezas tão vastas. Mas teve de levar adiante sua profissão, o que fez com tanto jeito, com tanto carinho, que a pobre Maria quase não sentiu. Ainda lhe disse:

- , Marivaldo, doeu só nadica de nada.

- É que minha mão tem zelo, tem cuidado no serviço.

E aproveitou a oportunidade para desfilar na mimosa concha do ouvido da morena, em feitio de louvação da sua beleza, dezenas de frases de efeito, recheadas de palavras doces e açucaradas, que ficariam perigosas em ouvidos diabéticos.

Maria encantou-se com tanta exaltação e predispôs seu coração desavisado à língua visguenta do auxiliar de farmácia. Sem medir esforços e consequências, Marivaldo lançou sobre a moça, nos dias que se seguiram à agulhada, petardos românticos de derrubar muralhas de fortaleza medieval, que dirá de ingenuidades caboclas. E, aí, quem há de resistir?

Maria soçobrou, por assim dizer, aos maremotos produzidos pela lábia de Marivaldo nos dois meses que se seguiram, e não houve conselho de avó, reprovação de mãe que a demovessem da determinação de ir viver seu caso de amor com o ensaboado.

Marivaldo montou casa simplória, provida de coisa pouca, mas com uma cama bonita, larga, capaz de segurar os arroubos que pretendia empreender pelo corpo intacto de Maria. Ela não fazia ideia do que seria sua vida. De ingênua e tímida jovem, crédula em tudo que se possa imaginar, a mulher do furador da farmácia.

Marivaldo desfrutava na cidade de reputação de mulherengo. Nenhum marido, em pleno gozo de suas faculdades mentais, permitia a entrada dele em casa, nem para entrega de envelope de Cibalena, quanto mais para aplicar injeção. Essa atividade era exercida sob rigorosa vigilância dos maridos, convencidos de que qualquer descuido era sinal de perigo iminente. Algum marido até requeria força policial para ficar de plantão.

Assim estranharam o fato de o ajudante de farmácia se dispor a viver com uma só mulher, quando tinha um pasto aberto a sua frente, todos os dias da semana. Porém começaram a dormir descansados a partir de então.

Os dias se sucederam entre gemidos e sussurros, entre suores e exaustões, a cama resistindo aos repuxos noturnos. Até que Marivaldo resolveu almoçar em casa todos os dias. Aproveitava, então, aquela hora e meia de folga para liberar seus lúbricos instintos pelo corpo jovem de Maria, que mal tinha tempo de desligar o fogo com que preparava o almoço. Enlaçada pela cintura, era arrebatada para a cama, onde aconteciam coisas que o pundonor aconselha omitir. Nada queimava no fogão, mas na cama os lençóis calcinavam e, do quarto acanhado, subia um cheiro forte de fumeiro.

Maria começou, assim, a gostar das brincadeiras e passou a exigir a presença do companheiro também na hora do café da tarde. Os embates se sucediam com tal frequência e entusiasmo, que Marivaldo principiou a definhar com o passar dos dias. Sua mão, antes firme na furação do corpo alheio, iniciava caminho sem volta na tremelicação involuntária, por falta de sustança nos músculos. Sua força estava esvaindo-se, exaurindo-se, desvanecendo-se.

não conseguia mais acordar cedo para o trabalho, sempre arranjando desculpa para os atrasos. Os olhos afundavam-se nas covas debruadas por um roxo macilento, as pálpebras quase insustentáveis. A marcha até a farmácia parecia feita com passos de paquidermes cansados. Um dia, teve de descansar sob a árvore da pracinha, para recobrar o fôlego faltante e atingir seu objetivo.

Por seu lado, Maria lavava a roupa, varria a casa e o terreiro, cozinhava ainda com mais disposição. Parecia com mais energia do que antes. O que faltava em Marivaldo sobrava nela.

E assim foi até que o auxiliar de botica, desfeito de toda a seiva corporal, exaurido até a última gota, extinguiu-se do mundo dos remédios e passou a ser apenas uma evaporação, um eflúvio, uma emanação etérea.

A partir de então, Maria perdeu fé na vida e viu seu mundo desmoronar com os calhaus de terra lançados sobre ataúde triste de Marivaldo, num dia melancólico qualquer de uma primavera sutil, que é melhor esquecer.

3 comentários:

  1. Que tragédia, meu mestre! Faça isso não. Ressuscita o Marivaldo. Logo quando o bichinho endireitou, vosmecê acha de evaporá-lo. Foi ciúme, não foi?

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  2. Quem sabe, lá no fundo, a personagem tenha provocado esse ciúme. Hehehe!

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  3. Concordo com o Paulo, ciúme puro...coitado do Marivaldo.

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