28 de janeiro de 2011

CHIFRES INOXIDÁVEIS


(Imagem colhida em emule.com.br.)
Instalou um par de chifres inoxidáveis na testa do marido, de não ser arrancado em prazo menor do que cinquenta e tantos anos, isto é, enquanto o desinfeliz ainda pudesse viver. Bem feito! Ele fez por merecer! Tratava-a como a uma vassoura de piaçava gasta, quase sem serventia, deixada no canto do banheirinho de empregada virada para cima. Aí foi só o moço da quitanda repetir a entrega na mesma semana, que ela resolveu liberar os escondidos e mal amados. A fornicação varou a hora do almoço, quando o traste deveria estar na folga do expediente, e valeu por duas entregas de pepinos e abobrinhas. O arroz chegou a sapecar na trempe do fogão. Ela nem ligou. Podia queimar até a panela toda, porque não arredaria corpo de debaixo daquele mulato suado, que sabia mexer os quadris, nem por todas as berinjelas do mundo. De nabos e rabanetes, passou a fazer compras na mesma quitanda, exigindo entrega quase imediata do mesmo moço, que sabia, por uma discreta piscadela de olhos, estar o caminho aberto, as concessões liberadas.

O marido vendia confiança às carradas, imaginando que a mulher jamais teria a coragem de traí-lo. Ela tinha um nome a zelar e também certo receio de seus modos um tanto abrutalhados. Era só ver como arrotava e palitava os dentes depois de comer. Imaginava-se um viquingue, se bem que nunca vira um viquingue após o almoço. Talvez por influência dos quadrinhos de Hagar, o Horrível! Até o porte físico sugeria a personagem. E assim dormia e acordava, sem se dar conta de que, em sua ausência, o pau comia em casa de Noca. E comia feio, dentro dos estatutos do corneamento geral.
Quando chegava a casa, depois do trabalho, não percebia o ar de candura estampado no rosto da mulher. É que dificilmente olhava no rosto dela. Aliás, há alguns anos não notava nada nela, nem para o bem, nem para o mal. E isso é a pior coisa que pode suceder em uma relação, sobretudo quando o outro lado é feminino. É o que mais magoa a mulher! Até uma traição passageira é mais tolerada pelo espírito feminino que a indiferença. Mas há um agravante, no caso: a indiferença gera frutos azedos, difíceis de suportar.
E foi o que aconteceu. Foi só o olho do entregador brilhar um pouco mais naquele dia, que ela viu ali a chance de dar o troco, com juros e correção monetária. No que ele depositava as frutas, verduras e legumes na mesa da copa, notou um olhar um tanto sequioso sobre si. Voltou-se para ela, que respondeu com um sorriso franco e acolhedor. O que se deu dali em diante é bom não contar, para não aumentar o opróbrio do marido, que no justo momento destrinchava rabada com polenta e agrião, num restaurante perto do trabalho no centro da cidade. E vejam que a comida desceu gostosa, sem obstruções, sem causar embuchamento.
Agora observem como é o mundo. O marido juraria de pés juntos que nada demais acontecia em sua casa durante o dia, a não ser o choro da mulher, diante da tevê, na repetição da novela vespertina, em que a escrava apanhava do feitor. E agora passeava um par de chifres descomunais, brilhante à menor lasquinha de luz, porém invisível a seus olhos.
Quando, certa tarde, tiveram de ir ao enterro do diretor da empresa em que ele trabalhava, chegaram de braços dados ao velório, numa descompostura apenas percebida pelos demais. Ele figurava uma segurança inexistente, num bigode mal aparado, de tintura duvidosa, enquanto a mulher distribuía compungidos boas-tardes, arredondados num vestido colado ao corpo, um pouco impróprio para a ocasião. Do contínuo ao presidente, todos os colegas de trabalho sabiam das estripulias da sua patroa, como se habituara a referir-se a ela em conversas no trabalho. E, não se sabe por que motivo, a notícia da traição chegara à sala do cafezinho. Pronto: daí em diante a difamação correu solta! Varou corredores e diretorias, seções e recepção. Sua fama de chifrudo tinha chegado à mais baixa cotação no mercado dos casados.
E continuou vivendo assim, sem se aperceber de nada, polindo os chifres a cada entrega da quitanda, até que o fogo da mulher se apagasse qual chama de cotoco de vela, num dia qualquer de São Nunca, em hora incerta e não sabida.

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