24 de fevereiro de 2012

LOURDINHA FUGIU PARA O RIO DE JANEIRO

Lourdinha havia combinado com Prudêncio fugir com ele na primeira lua nova dali em diante. Iriam para o Rio de Janeiro de trem, desde a estação de Santo Eduardo. Ninguém soubesse, mas já estava tudo acertado entre os dois, os únicos a dividirem tal segredo.
E era um segredo mais do que bem guardado. É que Lourdinha era casada com Vanderwal, muambeiro de relógios e joias falsificadas, as quais ia pegar no Rio de Janeiro de três em três meses. Já Prudêncio, imprudente desde o berço, só para contrariar os pais, estava noivo de Anunciata, que dormia e acordava na certeza de subir ao altar, no mais tardar, no mês de maio do ano que vem, “se não falhar aquela novena que fiz para Santo Antônio”, o padroeiro da vila.
Prudêncio trabalhava no ramo da panificação e da prevaricação, amassando a massa, enrolando a rosca, moldando o pão e bolinando mulher alheia. Aí, enquanto o cilindro batia a mistura de farinha, gordura, água, leite, açúcar e fermento, ele pulava a janela da fogosa Lourdinha e aplicava os conhecimentos adquiridos na arte da panificação, de não lhe deixar centímetro de carne sem seus apertos. Naquela hora, Vanderwal “deveria de estar na roda do sono das três da madrugada”, como ela dizia, sem saber das invasões noturnas possíveis e impossíveis da Lapa e adjacências, na volta dos cinquenta para os sessenta – o Rio ainda a capital desta república de bananas e tramoias. E o hotelzinho de Vanderwal dava de olhos sobre os Arcos.
Mas isso também não vinha ao caso. Estivesse o Vanderwal em sossego ou em farra, o que importava para Lourdinha eram as reinações sobre sua pessoa que Prudêncio, o imprudente, pudesse realizar e às quais ela se entregava com uma sem-cerimônia de, às vezes, varar a noite em gritinhos e funga-fungas.
Talvez o único que desconfiasse de alguma coisa fosse o Antônio Precisval, que passava em frente à padaria e à casa de Lourdinha, no oco da madrugada, para ir tirar leite das vacas no curral do Chiquito, e, vez e outra, via um vulto escuro – a cor de Prudêncio era chegada a um tisnadozinho – de avental branco, a romper com ligeireza os três ou quatro metros do beco que separava o estabelecimento comercial de relativo respeito da alcova da saliente. Precisval também não tinha nada com aquilo. E, de mais a mais, cada um que cuidasse de suas cabritas. Era o que pensava.
E Lourdinha ficava ao Deus dará. Sem filhos com que se ocupar, era aguardar a volta do marido cheio de muambas, que depois, em lombo de burro dolente, saía a oferecer em toda a vila e em mais algumas casas perdidas por entre plantações e pastos. Nesses interregnos, como dizia o Nico Fragoso do cartório, ela liberava a libertina que morava dentro de si, de ameaçar transformar a vila em filial de Sodoma e Gomorra.
Conforme o combinado, na data aprazada, Prudêncio colocou bilhete de despedida, em letra caprichada, dentro do pão especial que preparou, para o entregador levar, de manhã cedinho, à casa da noiva Anunciata. Já de mala arrumada e acertado, com o Amim, o carro de praça – como na vila se chamava o táxi –, que levaria o casal de pombinhos desvairados até a vila de Santo Eduardo, às margens da estrada de ferro Vitória-Rio, pegou Lourdinha, e saíram os dois fujões procurando passagens escuras na vila até chegarem à casa do chofer de praça – como à época se chamava taxista –, que dirigiu célere, a cerca de quarenta/cinquenta quilômetros por hora –, até a estação.
Imagem atual da estação, que na época era uma belezura (em estacoesferroviarias.com.br).

O trem vinha de Vitória e passava por Santo Eduardo por volta das seis horas da manhã, se não houvesse nenhum atrapalho na linha, se tudo corresse no previsto.
Assim chegaram a tempo de comer uma pamonha, tomar um café com leite quente de arrancar a pele do céu da boca e comer um pão fresquinho com manteiga da roça. Até essas pequenas coisas estavam com o paladar diferente.
Naquela mesma hora, porém, também chegava o Noturno do Rio de Janeiro e dele desembarcou no fim do cais da estação o traído Vanderwal, com seu chapéu de feltro, sua mala de couro cheia de traquitanas. Voltara antes do previsto e só não pegou Lourdinha aguardando o Expresso que vinha de Vitória, porque ela correu a se esconder no banheiro.
Espantou-se ele por encontrar o padeiro de guarda-pó e mala na mão, em hora que devia estar acabando de desenfornar os pães que preparava para a vila comer. E lhe perguntou inocentemente:
- Vai para Campos, Prudêncio, procurar emprego melhor?
Embaraçado, Prudêncio disse que tinha morte certa de parente em Olaria e que estava indo para o Rio de Janeiro a tempo de chorar o morto, em companhia dos demais membros da extensa família Carvalhosa. E aproveitou para dizer que o carro de praça do Amim estava ali ao lado, aguardando para ver se haveria passageiro para Liberdade.
Vanderwal agradeceu a informação e correu para não perder a condução.
Ao chegar a casa, deparou-se com o bilhete da mulher, dizendo que tinha ido para Manhumirim chorar uma prima que morrera no parto do sexto filho macho que punha no mundo. Vanderwal, em sinal de respeito, ainda tirou o chapéu e pediu a Deus pela alma da pobre coitada.
No final de mais quatro semanas, Vanderwal recebeu carta explicativa de Prudêncio, dando conta de todos os detalhes das reinações e da fuga e lamentando, inclusive, também sua atual condição de traído. Ele já não se responsabilizava mais pelas loucuras de Lourdinha, que se encantara pela vida airosa e desairosa das meninas que frequentavam as calçadas do entorno da Praça Tiradentes, naquela mui heroica e leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. E aproveitava a oportunidade para, descaradamente, pedir a ele que intercedesse junto ao dono da padaria, seu Vicente Celestino, xará do cantor de Acorda Patativa, pela recuperação do cargo de amassador de pães.
Vanderwal, do alto de seu despeito, também amassou a carta, que jogou no borralho em que preparava o café da manhã, e exclamou firme:
- Você há de comer o pão que o diabo amassou, padeiro dos infernos!
Anunciata, pelo que se soube posteriormente, deu de fazer trovas de amor, que declamava em ocasiões solenes ou não. Era só haver uma brecha num amontoado de gente, para que destilasse sua intragável dor de cotovelo nos ouvidos alheios.

Um comentário:

  1. Dizem que não é bom a gente ri da desgraça alheia mas, no caso do Prudêncio gargalho às despregadas. Só lamento o afogamento em versos da pobre Anunciata, esta sim, inocente vítima de deletérias circunstâncias.

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