Quando o socorri, o agressor já havia corrido.
Tinha ouvido o grito, no momento em que tomava uma caneca de café, debruçado no
balaústre do alpendre, olhando o cafezal que se estendia morro acima. Os grãos
já estavam bonitos, quase no ponto da colheita, e eu estava, então, ali,
imaginando a trabalheira que teria com meus colonos, para derriçar aquela
montoeira de café. Assim do nada, ouvi aquele grito lancinante, que cortou o ar
fresco da tarde daquele sábado.
Nada haveria no momento, e naqueles grotões quase
desabitados, que indicasse tragédia. A tarde estava serena, com os pássaros
silvestres voando de um lado a outro do terreirão, bicando o chão à procura de
bichinhos para comer. E eu ali, no alpendre, tinha acabado de tomar um bom
banho, posto a calça de linho, quando peguei a caneca de café e fui olhar o
cafezal no morro.
Ouvido o grito, montei no burro, que já estava
arriado – eu iria à vila naquela tarde-, e rapidinho cheguei até o lugar de
onde ele partira.
Ao vê-lo caído – era Procópio, colono de meu irmão
José, dono da Fazenda da Forquilha, um pouco acima da minha –, todo
ensanguentado, os olhos esbugalhados como que pedindo socorro, a voz já por um
filetezinho quase inaudível, percebi que nada poderia fazer. Aquilo não era
simplesmente um coice de burro, uma mordida de cobra, coisas assim com que já
estávamos acostumados a lidar.
E, para agravar ainda mais a situação do caboclo,
estávamos longe de qualquer recurso mais eficaz. Naquelas terras da Fazenda do
Jacó, o único comércio limitava-se à venda de meu outro irmão, Walter. Não
tínhamos nada para este tipo de socorro. As únicas coisas que podiam costurar
algo eram as agulhas da minha mulher e as sovelas do seleiro Sebastião Mulato,
que trabalhava para mim, mas que, naquele momento, estava na Rua, como
chamávamos a vila, seis quilômetros adiante.
Por isso é que pensei na caneca de água fresca da
talha.
Arrastei Procópio, com jeito, para debaixo da
sombra de uma paineira, pendurada no barranco da estrada, e lhe disse para
ficar quieto, que iria tentar buscar ajuda. E fui, no maior galope que o burro
consegue, até a venda do meu irmão. Naquela hora, certamente, haveria muita
gente lá que se dispusesse a auxiliar. O povo da roça, nessas ocasiões, é o
melhor que se pode encontrar: está sempre disposto a tudo.
Dois deles, tão logo ouviram meu relato, montaram
em seus animais e partiram comigo em direção ao ocorrido. Eram Chico Cinzento –
apelido por causa da cor de sua pele – e Nequinha Capador – alcunha tirada de
sua função de capar animais. Aliás, Nequinha quase chegava a ser enfermeiro
naqueles ermos, que iam da Vala, mais próxima da Rua, até a Serra da Boa
Esperança, bem depois da Forquilha.
Ao sair da venda, pedi a meu irmão um litro de água
fresca e uma caneca, para tentar amenizar um pouco o sofrimento do Procópio.
Sempre tivemos essa crença de que um bom gole de água fresca pode amainar
qualquer tipo de incômodo, de sofrimento ou de agonia.
Enquanto voltávamos para o local, Nequinha e Chico
ainda quiseram mais informações do sucedido, sem que eu lhes pudesse esclarecer
mais.
-E, pelo menos, Aurélio, você sabe quem fez essa
desgraceira no pobre do Procópio?
Também não sabia de nada. E nem desconfiava de
ninguém. Nem poeira no ar vi, quando cheguei lá. Ademais, Procópio era o tipo
de homem sem inimigos. Não era de confusão. E até a pinga que bebia, quando não
estava no trabalho, era bem regrada. Eu, por exemplo, nunca o vi bêbado, como
às vezes é comum entre aqueles homens rudes, nos momentos de distração.
Nas tardes de sábado, na venda do meu irmão, junta
uma turma de roceiros, para as compras da semana. E eles aproveitam também para
uns dedos de prosa e uns tapas na camulaia. Então, quando baixa a noite, alguns
já estão meio tortos, outros falando com a voz emplastrada, mas sem que haja
confusão ou briga. Ali todo mundo se conhece, sabe das manias uns dos outros,
conhece o que chateia um, o que deixa o outro contrariado, de maneira que eles
brincam, caçoam, mas até o limite de homens, como se costuma dizer.
Nequinha, então, falou do jeito estranho como
Valfredo chegou à venda. Meio espantado, meio apressado, pediu um martelo da
branquinha ao Valter, sorveu de um só gole, daqueles que depois produzem um
estralo na língua, bateu com o copo no balcão de madeira maciça e perguntou se
ainda era o mesmo preço. Valter disse que sim, ele meteu a mão no bolso, tirou
uma nota de dois cruzeiros, pagou, limpou os beiços grossos com as costas da
mão e tornou a montar no cavalo em que chegara.
Chico aproveitou para comentar que Valfredo só
falou um oi ao chegar. Quando saiu, saiu sem dizer nada, sem palavra, e pegou o
rumo da vila, o cavalo fustigado para que apressasse a marcha.
Quando nós três chegamos ao local onde eu deixara
Procópio, já o encontramos morto, o sangue fazendo um corgozinho talhado pelo
chão empoeirado, os olhos arregalados do pavor da morte, sem mais recurso nesta
vida. A alma desapegada do corpo, indo prestar contas ao Criador lá do outro
lado.
Morreu, sem tomar um golezinho da água fresca que
eu lhe trazia.
Dois dias depois do ocorrido, a que atendeu o
subdelegado de polícia da vila, assessorado pelo cabo e o soldado – todo o
destacamento de segurança daquele ajuntamento de casas –, um dos empregados das
minhas terras, ao passar a foice no capinzal fronteiro à estrada, encontrou a
arma do crime, ainda suja do sangue de Procópio. Peguei com jeito o facão, de
modo a não deixar minhas marcas nele, embrulhei numas folhas do Correio da
Manhã, que eu assinava, e levei para o subdelegado.
Quando a polícia botou as mãos em cima de Valfredo,
depois de tudo apurado, já nos preparávamos para a missa de sétimo dia do
coitado.
E o que eu soube depois é que Valfredo foi
absolvido pelo júri da comarca, porque seu advogado de defesa alegou que seu
cliente tinha agido num momento de fúria – uma tal de obnubilação dos sentidos,
como ele disse –, ao saber que Procópio enxertara a filha mais nova dele,
menina de seus quinze anos, de quem ele abusava no poço do valão um pouco acima
da sede da fazenda onde trabalhava. E, nessas condições - a gente há de convir
-, não há acusação que resista, não é mesmo?
E logo o Procópio, homem pacato, de poucas
palavras, bom trabalhador, que quase nunca saía do sério, nem quando tomava lá
suas calibrinas na venda do meu irmão!
Meses depois dessa desgraceira, nasceu o neto órfão
de Valfredo, filho de Procópio, que fora por ele sangrado como um porco de
chiqueiro, perto da paineira na estrada que vai dar na Forquilha.
E o avô resolveu chamar o menino de Osíris, o nome
do deus da morte do antigo Egito, que ele vira no Almanaque do Pensamento
daquele ano.
Imagem em acasa.org.br. |
De causo em causo, o amigo vai criando uma mitologia.
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