12 de fevereiro de 2012

UMA CANECA DE ÁGUA FRESCA PARA ALIVIAR A DOR

O máximo que eu poderia fazer por ele agora, ali, no chão, agonizando, era trazer uma caneca de água fresca da talha. Seu estado era desesperador e eu não via outros modos de ajudá-lo a sobreviver. Aí, pensei que, talvez, um bom gole de água fresca pudesse amenizar qualquer sofrimento por que estivesse passando. E deveria ser bem sofrido. Sua barriga estava aberta, quase de cima abaixo, por um golpe certeiro de facão.

Quando o socorri, o agressor já havia corrido. Tinha ouvido o grito, no momento em que tomava uma caneca de café, debruçado no balaústre do alpendre, olhando o cafezal que se estendia morro acima. Os grãos já estavam bonitos, quase no ponto da colheita, e eu estava, então, ali, imaginando a trabalheira que teria com meus colonos, para derriçar aquela montoeira de café. Assim do nada, ouvi aquele grito lancinante, que cortou o ar fresco da tarde daquele sábado.
Nada haveria no momento, e naqueles grotões quase desabitados, que indicasse tragédia. A tarde estava serena, com os pássaros silvestres voando de um lado a outro do terreirão, bicando o chão à procura de bichinhos para comer. E eu ali, no alpendre, tinha acabado de tomar um bom banho, posto a calça de linho, quando peguei a caneca de café e fui olhar o cafezal no morro.
Ouvido o grito, montei no burro, que já estava arriado – eu iria à vila naquela tarde-, e rapidinho cheguei até o lugar de onde ele partira.
Ao vê-lo caído – era Procópio, colono de meu irmão José, dono da Fazenda da Forquilha, um pouco acima da minha –, todo ensanguentado, os olhos esbugalhados como que pedindo socorro, a voz já por um filetezinho quase inaudível, percebi que nada poderia fazer. Aquilo não era simplesmente um coice de burro, uma mordida de cobra, coisas assim com que já estávamos acostumados a lidar.
E, para agravar ainda mais a situação do caboclo, estávamos longe de qualquer recurso mais eficaz. Naquelas terras da Fazenda do Jacó, o único comércio limitava-se à venda de meu outro irmão, Walter. Não tínhamos nada para este tipo de socorro. As únicas coisas que podiam costurar algo eram as agulhas da minha mulher e as sovelas do seleiro Sebastião Mulato, que trabalhava para mim, mas que, naquele momento, estava na Rua, como chamávamos a vila, seis quilômetros adiante.
Por isso é que pensei na caneca de água fresca da talha.
Arrastei Procópio, com jeito, para debaixo da sombra de uma paineira, pendurada no barranco da estrada, e lhe disse para ficar quieto, que iria tentar buscar ajuda. E fui, no maior galope que o burro consegue, até a venda do meu irmão. Naquela hora, certamente, haveria muita gente lá que se dispusesse a auxiliar. O povo da roça, nessas ocasiões, é o melhor que se pode encontrar: está sempre disposto a tudo.
Dois deles, tão logo ouviram meu relato, montaram em seus animais e partiram comigo em direção ao ocorrido. Eram Chico Cinzento – apelido por causa da cor de sua pele – e Nequinha Capador – alcunha tirada de sua função de capar animais. Aliás, Nequinha quase chegava a ser enfermeiro naqueles ermos, que iam da Vala, mais próxima da Rua, até a Serra da Boa Esperança, bem depois da Forquilha.
Ao sair da venda, pedi a meu irmão um litro de água fresca e uma caneca, para tentar amenizar um pouco o sofrimento do Procópio. Sempre tivemos essa crença de que um bom gole de água fresca pode amainar qualquer tipo de incômodo, de sofrimento ou de agonia.
Enquanto voltávamos para o local, Nequinha e Chico ainda quiseram mais informações do sucedido, sem que eu lhes pudesse esclarecer mais.
-E, pelo menos, Aurélio, você sabe quem fez essa desgraceira no pobre do Procópio?
Também não sabia de nada. E nem desconfiava de ninguém. Nem poeira no ar vi, quando cheguei lá. Ademais, Procópio era o tipo de homem sem inimigos. Não era de confusão. E até a pinga que bebia, quando não estava no trabalho, era bem regrada. Eu, por exemplo, nunca o vi bêbado, como às vezes é comum entre aqueles homens rudes, nos momentos de distração.
Nas tardes de sábado, na venda do meu irmão, junta uma turma de roceiros, para as compras da semana. E eles aproveitam também para uns dedos de prosa e uns tapas na camulaia. Então, quando baixa a noite, alguns já estão meio tortos, outros falando com a voz emplastrada, mas sem que haja confusão ou briga. Ali todo mundo se conhece, sabe das manias uns dos outros, conhece o que chateia um, o que deixa o outro contrariado, de maneira que eles brincam, caçoam, mas até o limite de homens, como se costuma dizer.
Nequinha, então, falou do jeito estranho como Valfredo chegou à venda. Meio espantado, meio apressado, pediu um martelo da branquinha ao Valter, sorveu de um só gole, daqueles que depois produzem um estralo na língua, bateu com o copo no balcão de madeira maciça e perguntou se ainda era o mesmo preço. Valter disse que sim, ele meteu a mão no bolso, tirou uma nota de dois cruzeiros, pagou, limpou os beiços grossos com as costas da mão e tornou a montar no cavalo em que chegara.
Chico aproveitou para comentar que Valfredo só falou um oi ao chegar. Quando saiu, saiu sem dizer nada, sem palavra, e pegou o rumo da vila, o cavalo fustigado para que apressasse a marcha.
Quando nós três chegamos ao local onde eu deixara Procópio, já o encontramos morto, o sangue fazendo um corgozinho talhado pelo chão empoeirado, os olhos arregalados do pavor da morte, sem mais recurso nesta vida. A alma desapegada do corpo, indo prestar contas ao Criador lá do outro lado.
Morreu, sem tomar um golezinho da água fresca que eu lhe trazia.
Dois dias depois do ocorrido, a que atendeu o subdelegado de polícia da vila, assessorado pelo cabo e o soldado – todo o destacamento de segurança daquele ajuntamento de casas –, um dos empregados das minhas terras, ao passar a foice no capinzal fronteiro à estrada, encontrou a arma do crime, ainda suja do sangue de Procópio. Peguei com jeito o facão, de modo a não deixar minhas marcas nele, embrulhei numas folhas do Correio da Manhã, que eu assinava, e levei para o subdelegado.
Quando a polícia botou as mãos em cima de Valfredo, depois de tudo apurado, já nos preparávamos para a missa de sétimo dia do coitado.
E o que eu soube depois é que Valfredo foi absolvido pelo júri da comarca, porque seu advogado de defesa alegou que seu cliente tinha agido num momento de fúria – uma tal de obnubilação dos sentidos, como ele disse –, ao saber que Procópio enxertara a filha mais nova dele, menina de seus quinze anos, de quem ele abusava no poço do valão um pouco acima da sede da fazenda onde trabalhava. E, nessas condições - a gente há de convir -, não há acusação que resista, não é mesmo?
E logo o Procópio, homem pacato, de poucas palavras, bom trabalhador, que quase nunca saía do sério, nem quando tomava lá suas calibrinas na venda do meu irmão!
Meses depois dessa desgraceira, nasceu o neto órfão de Valfredo, filho de Procópio, que fora por ele sangrado como um porco de chiqueiro, perto da paineira na estrada que vai dar na Forquilha.
E o avô resolveu chamar o menino de Osíris, o nome do deus da morte do antigo Egito, que ele vira no Almanaque do Pensamento daquele ano.

Imagem em acasa.org.br.

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