20 de julho de 2011

O MORTO

Imagem em http://www.palavras.blog.br/ (por Catarino).

Morreu e teve a alma despachada para seu destino final, com a conta de débitos e créditos entre as mãos crispadas, sob a camada de flores dolorosas daquele caixão simples.

De seu, levava também umas anotações com questionamentos que iria fazer assim que encontrasse alguém do outro lado.
Antes de fazer a passagem, espichar as canelas, entregar a alma – ou coisa que o valha –, não acreditava em nada que ultrapasse as nuvens negras dos verões catastróficos, e agora se via ali, morto definitivamente, com a obrigação de prestar contas não se sabe aonde, não se sabe a quem.
A viúva e as filhas solteironas – não se casaram por implicância dele – tinham feito as encomendações do corpo e da alma, que acreditavam existir dentro daquele invólucro carnal cheio de quizílias, cheio de presunções, no intuito de aliviarem os embates no outro mundo. Afinal, fosse o que fosse, era pai e esposo.
Pelo seu passado incréu, sabiam que ele teria muita dificuldade de iluminação e/ou salvação. E temeram por seu espírito desacorçoado rondando a casa que deixara como herança, ou seu antigo local de trabalho, onde era odiado por vários e apenas tolerado pelos demais.
Se alguém o amou nesta vida, tirante a mãe já morta e enterrada de muitos anos, talvez só mesmo a mulher, nos primeiros anos de casamento, e as filhas, por uma devoção normal que filhos sentem pelo pai, ainda que em vários momentos ele não fizesse por merecer.
Tinha sido, de fato, uma pessoa desamorável por todos os méritos. Tanto é que, durante o velório, não se ouviu palavra que lhe pudesse amenizar a memória a deixar entre os vivos. Os mais chegados apenas abraçaram a viúva e as filhas, com o aperto costumeiro nessas ocasiões, sem dizer palavras que não as protocolares. Os demais apenas apertaram-lhes as mãos, calados.
Ali estava um defunto desmerecido, desamado, desconsiderado.
Deve ser péssimo morrer nessas circunstâncias.
Ao enterrá-lo, todos desejaram jogar uma pá de terra sobre o ataúde, a fim de se certificarem de que ele estaria, então, verdadeiramente morto e enterrado. Mais do que no arquivo morto da repartição, onde pontilhara esquisitices de quase aposentadoria.
Deste modo, ao dar de cara com a primeira visagem do Além, não sabia as credenciais a oferecer, visto que todos lá embaixo, onde a chusma de avantesmas tinha acesso, estavam com o semblante calmo dos que cumprem suas tarefas mais simples e queridas.
A seu favor, talvez, apenas algumas lágrimas sinceras das filhas, não tão copiosas como esperadas, e umas fingidas da mulher, cansada daquele fardo pesado dos últimos anos.
A ele restaria, assim, procurar o rumo das almas mal-amadas, para as quais a missa de sétimo dia não teria força suficiente de fazer entrar em nenhum tipo de paraíso porventura existente do lado de lá.
Com trinta dias do passamento, seu ectoplasma rodopiava no éter como partícula de ânion em acelerador atômico desregulado.
E nada mais foi feito em seu favor!

Um comentário:

  1. É, parece que a Mãe Natureza de vez em quando perde a mão e produz estrupícios desta ordem, capazes de estropiar a física de partículas.

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