8 de fevereiro de 2011

TOU A PERIGO!

Ao morrer-lhe a mulher, depois de muito sofrimento com uma doença degenerativa, chorou feito criança. Quem estava próximo se sensibilizou com a cena. Tido como homem duro, afeito às lidas da roça, capaz de pegar um porco cachaço pelas orelhas, os que viram não acreditaram no que viam. E pensaram: Atrás dessa rudeza, se esconde um coração sentimental.

Viviam há mais de cinquenta anos e, nos últimos cinco, ele passou em desvelos, cuidando dela, como se fosse sua última manifestação de amor por aquela mulher frágil, mãe dedicada e companheira de toda uma vida.

Mas só foi acabar a missa de sétimo dia e o espírito diáfano dela embicar rumo ao paraíso, para reunir filhos, genros e noras e dizer que não podia viver só, que estava a perigo, nos seus quase oitenta anos. Precisava de mulher, precisava de extravasar sua sexualidade. Ainda tinha muita lenha para queimar.

Os que ali se encontravam ficaram constrangidos, sem saber o que dizer. Ninguém poderia imaginar que aquele homem pudesse ter passado um apagador sobre a memória da mãe e sogra, ainda com corpo quase intacto no cemitério. Nem mesmo que tivesse tal disposição. Os filhos se horrorizaram. E o choro compungido do dia da morte? E as lágrimas sentidas no velório? E o amparo de que necessitara durante o cortejo até a inumação da pobre coitada? Seria tudo encenação?

Agora, com outra cara, outro jeito, outra postura, desfiou o seu argumento, todos sentados em torno da mesa do lanche, as bocas cheias de broa de fubá e incredulidade. Os filhos indagaram como se daria isso. Quem se interessaria por um homem na sua idade? Com certeza, alguma espertalhona, de olho na sua aposentadoria, na sua casa bem montada! Seria alguém da sua idade? Nem pensar! Já tinha imaginado tudo isso e resolvera escolher a dedo. Quem, pai? Quem, meu sogro? A Carminha. A Carminha?! Espantaram-se todos. Logo a Carminha?!

Carminha tinha sido a cuidadora da esposa, durante os últimos três anos, quando a doença se agravou e ele precisava de alguém com habilidade e disposição física para os cuidados com a mulher. Aí, aproveitou que não estava fazendo nada mesmo e estabeleceu com Carminha, quarentona sacudida e desembaraçada, coxas grossas e murundus salientes, sociedade carnal voluntária, durante as madrugadas, de só ser interrompida, vez ou outra, pelos gemidos da agora finada. Tudo movido a poder do remédio azul, que comprava na conta da farmácia do Astolfinho, dentro do maior sigilo. E ainda teve o desplante de argumentar que a finada, mesmo antes de dar o último suspiro – que Deus a tenha –, tinha aposentado as partes, de não querer ser bulida nem na hora do banho. E como é que ele ficava? Iria atrás das meninas da guacha (que é como na terra se nomeia a zona do meretrício), na Rua da Arara, com o risco de pegar uma doença brava e botar sua reputação a perder? Carminha é muito compreensiva e aceitou sua proposta. Tão boa ela é, essa menina! Depois, também, vocês todos moram longe. Ninguém vai ficar aqui cuidando de mim, não é? Cada qual tem seu interesse, sua obrigação.

(Imagem em elblogalternativo.com.)
Por isso, resolveu comunicar a eles sua intenção de fixar a Carminha dentro de casa, com os direitos e as regalias de esposa legítima. E azar dos que não gostassem, porque, para ele, estava tudo muito bom, muito a contento! E olha: quem morreu foi sua mãe. Eu continuo vivo! Quem me dá razão é Paulinho da Viola: “E a vida continua...” E cantarolou trecho da canção, tamborilando na mesa antiga de jacarandá um ritmo nervoso de samba descompassado.

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