1 de outubro de 2010

O CONSERTADOR DO MUNDO

- Vou consertar o mundo! – proclamou em voz alta, numa tarde fresca do mês de setembro, por entre as bananeiras do quintal, no alto da Serra da Cachoeira Alegre, no distrito de Carabuçu, no município de Bom Jesus do Itabapoana, Estado do Rio de Janeiro, o cidadão que atendia pelo nome de registro de Antônio Fonseca da Assumpção, assim mesmo com a grafia antiga.

Dá-se a localização precisa, para que se perceba a gravidade do brado que partiu daquele homem pretensioso e da rápida reviravolta em suas pretensões caboclas.

Ele nunca tinha ultrapassado os limites do distrito em que nascera, há coisa de trinta e tantos anos, e achava um borbotão de coisas erradas. O plano da criação era falho: havia lacunas a serem preenchidas, itens a serem criados, alguns a serem reformados, outros a desaparecerem. Por exemplo, nestes últimos, ele queria saber qual era a utilidade do berro da vaca. Aquilo só incomodava. Ninguém entendia língua de vaca: nem o boi, nem os bezerros. Para que, então, ela ficar berrando? A bosta, não, a bosta servia de adubo, tinha lá sua serventia. Mas o berro era de uma inutilidade só. Comentando isso na venda do Valter, num sábado tranquilo de primavera, teve o desgosto de ouvir do amigo de talagadas João Simplício que o leite Mococa estava usando o berro da vaca na propaganda do rádio: “A vaquinha Mococa está mugindo / A vaquinha Mococa está dizendo / Beba leite em pó Mococa!” – e a vaquinha a berrar a cada verso cantado. O abalo na sua convicção durou até o próximo gole. Já mais calibrado, voltou a defender seu ponto de vista.

Outras coisas que mereciam seu reparo eram o arroz e o abacaxi. Onde já se viu? Gasta-se uma quantidade exorbitante de água para cultivar o arroz e sai aquele grão pequenininho e seco, duro que só ele, enquanto o abacaxi, plantado no areal, na terra seca, é cheio de caldo, cheio de sumo. Está-se vendo que o troço foi mal planejado: desperdiça de um lado e falta do outro. Tinha de haver um equilíbrio. E o tamanho da árvore da gabiroba, para o tamanho da frutinhazinha furreca que ela dá? Para que uma árvore tão grande para produzir uma fruta tão pequena, ao passo que a abóbora, grande do jeito que é, nasce pelo chão em rama que não dá para sustentar um abacaxi? Estava tudo errado, mal planejado e mal executado!

E a mulher do Zé Portinho? Aquilo era uma aberração da natureza, um atentado ao bom gosto de tão feia e porcamente acabada. Tinha que passar por uma reforma total: do chassi à carroceria, incluindo os estofados. Faça-me o favor! O problema seria convencer o marido da necessidade da obra. O negócio era de tal vulto, que ele ainda não tinha decidido por onde começar: se nas partes de baixo, se nas partes de cima, pelo porão ou pela cumeeira. Mas que era de urgência, isso lá era! E ria, quando falava assim.

Foi acabar de tecer essas considerações e o Zé Portinho surgir porta adentro da venda do Valter, curvando seu corpão dobrado no balcão. João Simplício fingiu que ia lá fora cuspir, porque julgou que o caldo ia entornar, a situação ia catingar a chifre queimado.

O de sobrenome Assumpção, pego de surpresa com a aparição do outro, não titubeou:

- Amigo Zé Portinho, que muito me estima sua amizade! Tenho um negócio muito bom pra lhe propor, coisa que só um amigo faz para o outro!

Do lado de fora da venda, João Simplício sentiu um frio na barriga, prevendo tragédia anunciada. E pensou com seus botões: não quero nem ouvir!

- Pois diga lá, Tonico! Se é negócio bom, é comigo mesmo! – falou com disposição Zé Portinho.

- Tou precisando vender a minha tropa de burros e a chácara, pra mode pagar uma dívida que tenho com o amigo João Simplício, ali fora cuspindo, e cair nesse mundão de Deus, porque tenho umas intenções aqui na cabeça que espero realizar em antes de morrer.

João Simplício não acreditou no que acabara de ouvir. Voltou para dentro da venda e percebeu que o efeito da camulaia não era tão bravo assim. O amigo tinha tomado juízo.

- Ora, bote preço, que eu vejo se posso pagar. – disse Zé Portinho.

- Quase nem um nada, amigo Portinho! Coisa de pouca monta, de pouco valor. Você me dá três contos de réis, passo tudo para o amigo de papel passado, na conformidade dos cartórios.

- Três contos de réis é meio muito, Tonico! Se você aceitar oferta, posso até pensar no caso.

- Pois oferte, que tou aqui para negociar!

- Já que o amigo diz que vai cair no mundo, vai precisar de uma boa montaria. Dou meu cavalo pampo, arreado, e mais dois contos de réis.

- Que é isso, amigo, tá desfazendo da minha propriedade? Se chegar a dois e meio mais o pampo, eu fecho com você!

- Vamos fazer o seguinte, amigo Tonico: o cavalo arreado, dois contos de réis e pode levar a patroa consigo, que tou abrindo mão dela também.

- Que isso, Zé Portinho? Aí nem com cinco contos de réis eu topo o negócio. Manta em amigo não se dá, companheiro!

E foi uma risadaria só, a roda de cachaça se renovando entre aqueles homens rudes.

Depois dessa, Antônio Fonseca da Assumpção, assim mesmo com a grafia antiga, parou com a besteira de querer consertar o mundo. É melhor deixar tudo como está, inclusive a dívida com o amigo João Simplício. No fim, tudo se arranja, mas a feiura da mulher do Zé Portinho, nem com dez encarnações!

Um comentário:

  1. O amigo Assumpção podia ser um desvairado das idéias mas sensatez não lhe faltava. Belo causo, Saint-Clair.

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