Diziam lá na vila que, à noite, estavam acontecendo coisas esquisitas. Não se tinha certeza de que fossem humanas ou sobrenaturais. As madrugadas ficaram, assim, propensas a assustar os moradores em seu tranquilo sono dos cinquenta. Não encontraram eles, então, outra alternativa a não ser instituir uma guarda noturna, que rondasse as ruas, da meia-noite até o dia clarear.
Vila pequena, guarda pequena: só dois homens. Mas dois valentes, dois destemidos, dois desassombrados. Não dois quaisquer. Sobretudo, dois que se dispusessem a deixar a cama quente e a costela da mulher para bater perna num lugarejo sem vitrines, sem luminosos, sem notívagos. A paga pelo trabalho daria para as compras do mês e sobraria um dinheirinho bom.
Tudo acertado, Zé Carola e Nego Souza começaram na nova função. Cada dia, tinham histórias mirabolantes para contar. Perseguições a vultos que desapareciam por entre as trevas, corrida atrás de um provável ladrão de galinha ou de roupa no varal. Até que, numa noite de lua cheia, abarrotada de malefícios e fantasmagorias, um tiro de garrucha ribombou na vaguidão das ruas. Um uivo macabro se ouviu a seguir. E mais tiros e passos de uma perseguição apressada sobre os paralelepípedos. O sol da manhã veio revelar sobre calçadas e pedras do chão marcas de sangue.
O relato dos dois foi de arrepiar os cabelos. O vulto de um cão negro, imenso, surgido das sombras, olhos faiscantes, dentes luminosos arreganhados, baba cintilante, língua vermelha incandescente, a boca ameaçadora a expelir um bafo pestilento. Zé Carola não teve dúvidas: a encarnação do capeta ou o próprio capeta. Num repente, municiou sua garrucha com cartuchos benzidos por Alziro Zarur através das ondas do rádio e mandou chumbo. O coisa ruim, um fogaréu só, fedor insuportável de enxofre, disparou rua abaixo, até desaparecer na figueira perto do valão. Nego Souza confirmou tudo, tudinho, tudinhozinho, tal e qual Zé Carola contou, sem tirar nem pôr. Só que ele também andou dando uns tiros, embora com cartuchos mundanos, sem serventia para essas ocasiões.
Espantadíssimo, o povo, que acreditava até na Carta Brant de Carlos Lacerda, combinou fazer uma novena em desagravo de qualquer coisa que estivesse chamando o belzebu.
Não foi preciso. Domingos Peçanha, pescando no valão da figueira, descobriu estendido no capim o cadáver do vira-lata preto, de nome Azeviche, que era o divertimento das crianças do lugar.
A guarda noturna foi desfeita no dia seguinte, mas os dois juram de pé junto, até hoje, por tudo que é mais sagrado, quero ver a minha mãe morta, que o satanás, príncipe de todos os infernos, andou, em pessoa, assombrando a vila de Santo Antônio da Liberdade, nos idos do governo do Dr. Getúlio, que Deus o tenha!
Ahhhh, Saint-Clair, que pena, era só um vira-lata? Os dois "machos" não tiveram nem tempo de curtir o "heroismo"! Isto que chamo de desfecho sumário.
ResponderExcluire eu acredito nos impolutos guardas, lá em Calçado, passeava pela vaguidão da madrugada uma mula sem cabeça com estrela na testa..não gosto nem de lembrar, noites sem dormir de medo. Ai...ai...e hoje é dia das crianças...Saudade!
ResponderExcluirLacerda nunca teria discursado numa tribuna se tivesse tido a oportunidade de ler este texto...
ResponderExcluirTexto deliciosamente sarcástico, uma beleza!
Abração.