Caminhava pela calçada da Rua Moreira César, soterrado por toda a inocência do mundo, quando, de repente, saiu do supermercado, passos rápidos, uma mulher loura, superdecotada, short curtinho de doer nos olhos, cabelos longos e jeitos superiores. Sua pele parecia resplandecer ao sol, para usar uma imagem simplesinha, muito pálida diante do objeto descrito. Saíra para fumar, pois, como todos sabem, não se pode mais fazer fumaça sob tetos.
A repentinidade do acontecimento e a corpulência da loura, provida de tudo aquilo que dá inveja até em estátuas de mármore, quase me fizeram voltar ao estágio fetal, impotente e embasbacado com aquilo tudo.
Derrotado em minha pequenez, senti-me impedido de olhar com mais delongas a loura, como é comum acontecer nesses casos. Não tive coragem de usar a tática de fingir que esquecera alguma coisa e voltar dois passos, para depois, novamente, fingir que não esquecera nada, e voltar outros dois, e assim empreender exame mais percuciente que me fizesse apreciar o panorama que se me descortinava à visão.
Entretanto fui imbuído de um acachapante espírito franciscano: eu, simplesmente, não merecia aquilo! Por isso, continuei andando pela calçada, sem sequer me arriscar a um torcicolo justificável. E me arrependo profundamente até hoje. Uma visão daquelas, nem Vasco da Gama diante do gigante Adamastor! Faça-me o favor!
2. Comentário perfunctório
Editon já havia cursado as faculdades de Letras e de Direito, quando se meteu a fazer Museologia. Era um espírito inquieto, que jamais estava preso a limitações. Queria sempre mais. Mas a mistura que a cabeça fazia com tanta informação levava-o, às vezes, a usar palavras e expressões que pareciam rajadas de metralhadora descalibrada em mãos de criança pequena. Certa ocasião, participava de um curso extracurricular e se encantou pela erudição da professora. Ao fim de uma palestra cheia de informações e novidades sobre a arte medieval europeia, com destaque para o Barroco e o Rococó, não se conteve e lhe disse em tom altamente elogioso:
- Mestra, a senhora hoje foi simplesmente perfunctória. Parabéns!
Ao chegar ao trabalho e contar ao colega, foi advertido para o real significado da palavra. Sem acreditar, pegou o dicionário para conferir. Foi um balde de água fria que o Aurélio lançou sobre ele: “Que se faz como simples rotina funcional, e não por necessidade ou visando a um fim útil; superficial, ligeiro.”
E resolveu não voltar para a aula seguinte, a fim de não ser acusado de agnosia.
Arrependeu-se amargamente do desgoverno vocal e se lembrou de Pepeu, Baby e Galvão: “O mal é o que sai da boca do homem”.
3. "Quem é esse cadáver?"
Na época, corria por Bom Jesus uma gíria nova, que os rapazes estavam utilizando para se referir a outra pessoa: cadáver. Era comum, então, um amigo passar pelo outro e dizer:
- E aí, cadáver? Que vai fazer hoje, cadáver? Viu o cadáver do Zé Américo aí?
Um tanto esquisito, mas era isso o que acontecia.
Um dos sócios da empresa era conhecido pelo diminutivo de seu prenome, Joãozinho, ou seu Joãozinho, como os empregados o tratavam.
Lá uma tarde, seu Joãozinho determinou que se fizesse um depósito bancário em sua conta pessoal na agência do Banco do Brasil. Chamei o Pipa, já com a ficha de depósito preenchida e o dinheiro correspondente, e pedi que ele fosse até o banco.
- Pipa, por favor, faça esse depósito na conta de João Batista Ferreira Borges, no Banco do Brasil.
Gaiato como sempre, cheio de dentes na boca debochada, perguntou do topo da escada que dava acesso ao escritório, ao lado da mesa do patrão, que lá estava:
- Quem é esse cadáver?
Da mesa detrás, apontei discretamente para o patrão, que teve a cor das orelhas passada, em fração de segundos, do rosa para o roxo.
Daí em diante, com o arrependimento atravessado na goela, Pipa tratou de baixar sua bola e ter mais concentração no trabalho, senão iria parar no olho da rua.
No entanto, na verdade, seu Joãozinho deu boas gargalhadas, depois que o funcionário boquirroto saiu para o banco.
Nada a dizer. Só aprovação entusiástica: clap, clap, clap...
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