10 de junho de 2011

O AVARENTO (OU: MOLIÈRE NÃO MORREU EM VÃO)

Naquele fim de semana, chegou ao fim da linha no pão-durismo. Comprou um franguinho, praticamente um pinto, para que a empregada fizesse assado com farofa, para o almoço de domingo. Impossível comer aquele inocente, canelinhas sapecadas, asinhas pedindo socorro, por ter tido uma morte tão prematura e inglória.
Ultimamente a doença da avareza estava abusando dele: cada vez aumentava de proporções.
Imagem em morfablog.com
Mas isso vinha de outrora. Para se ter uma ideia, quando tinha venda de secos e molhados na rua do cemitério, tirava com a faca a lasquinha da batata que passasse minimamente do peso pedido pelo freguês. Todos estranhavam seu comportamento.
Os filhos só foram descobrir que manteiga não é rançosa por natureza, já muito tempo depois, porque toda a que eles consumiam era a sobra da venda, que ele mandava na lata de cinco quilos borrada com os restos do produto.
- Mamãe, comi na casa da Joana uma manteiga com gosto diferente, que não amarga, nem agarra na boca. – disse uma filha.
- Isso é que é manteiga, minha filha. Não é essa porcaria que a gente come aqui em casa!
Agora, com mais idade, o vírus da sovinice atacava com força total.
Certa feita, voltou ao supermercado com uma sacola plástica com a água degelada do frango lá comprado, para exigir o equivalente em carne. Semelhantemente fez com o açougueiro da esquina. Após aparar cada nervurinha, cada aba de gordura dos bifes, foi ao açougue reclamar o mesmo peso em carne limpa.
Resolveu, a fim de não gastar o gás de seu botijão, cujo preço, segundo ele, andava pela hora da morte, que o frango de domingo, depois de temperado, fosse levado para assar na padaria, naquelas televisões de cachorro.
Nessa mesma padaria, depois de uma brilhante ideia que tivera, solicitou que lhe fossem dados os pés e os pescoços dos frangos vendidos ali, para com eles fazer canja. Os filhos, quando souberam, ficaram transtornados com a atitude e se dirigiram ao gerente, a fim de lhe solicitar que não atendesse ao seu pai.
Passou também a não pagar a conta d’água, porque estava chovendo muito e água é dádiva que cai do céu, sem que Deus cobre por isso. Dirigiu-se ao escritório da companhia, para reclamar das cartas de cobrança e ameaçava processar todo mundo.
Só comprava frutas e legumes no sacolão – duas laranjas, quatro jilós, um inhame, uma batata, uma beterraba –, em dia de promoção, quando ainda reclamava por mais descontos. E contava os palitos de fósforos da caixa, para exigir que estivessem na quantidade anotada no rótulo.
Tudo que fosse grátis, doado, ele queria. Assim tinha um embornal de dentaduras em casa, que ganhava de cada candidato a vereador do município. Viajava com frequência à cidade próxima, para ganhar aparelhos de surdez, também oferecidos por políticos. Nem mesmo a doação de um cobertor da Defesa Civil deixou de receber, ainda que não necessitasse. Justificou-se em casa, ao chegar com o cobertor, todo contornado com os dizeres “Defesa Civil/RJ”, afirmando que o cobertor estava sendo dado, não seria ele a se fazer de soberbo e não aceitar.
Colecionava remédios que ganhava da secretaria de saúde da cidade, mas não os tomava. Eram dados, então ele pegava.

Dia desses, duas adolescentes bateram à sua janela, com o livro de ouro do Boi Pintadinho Nação Maravilha. Convenceu-as a aceitar apenas um real. Foi lá dentro, pegou na gaveta uma moeda de cinquenta centavos e deu nome falso, para que elas não o identificassem corretamente entre os colaboradores.

Um dia, a filha o encostou na parede, tentando fazê-lo ver o tipo de vida que estava levando, a mesquinhez a que estava reduzindo seus últimos dias. Depois de muito se explicar, acabou por admitir que “isso é da gente”, como se fosse um órgão interno, único e insubstituível, ou um fatalismo do qual não se pudesse escapar, como nas antigas tragédias gregas.
Túmulo de Molière, no cemitério Pére-Lachaise, Paris.
Imagem colhida em pt.wikipedia.org.
Por um tipo assim, é que Molière está mais vivo do que nunca, embora morto e enterrado desde 1673, no cemitério parisiense de Père-Lachaise.

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