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Terminei de ler, há cerca de um mês, o livro Pan América, de José Agripino de Paula (Editora Papagaio), em reedição atual, que adquiri na Livraria Cultura, em minha última visita a São Paulo. E, como prometi em outra oportunidade, está aqui a minha impressão de leitor.
Tal livro já havia sido citado, de forma um tanto difusa, na música Sampa (1978), de Caetano Veloso, conforme ficamos sabendo depois, acho que por informação do próprio compositor. Por isto, sempre esteve em minhas metas de leitura.
Consta, ainda, que foi objeto de teses acadêmicas e de culto de artistas e intelectuais, logo após seu lançamento em 1967.
Quero dizer-lhes que não foi sem uma grande dose de sacrifício que levei sua leitura a cabo, já que leituras de textos literários, em princípio, devem ser prazerosas, a não ser que sejamos críticos literários ou revisores de textos.
No entanto impus-me este encargo, a fim de justificar a expectativa que tinha, motivada pelo conhecimento da existência do livro, há muito fora de catálogo, e também pela devoção de Caetano Veloso, um dos meus compositores prediletos, por ele.
Para reforçar, ainda mais, este encasquestamento em levar a leitura até o fim, estava o fato de que, durante todo o tempo em que fui professor, Caetano e Sampa se misturavam a outros autores e obras, daqui, de Portugal e de outros países lusófonos, d'antanho e de hoje, na exemplificação do uso competente e criativo de nossa bela língua.
Assim não podia fazer cara de pastel diante de obra incensada por um dos meus ídolos.
No prefácio que fez para esta nova edição da obra de José Agripino de Paula, Caetano reitera sua admiração pelo caráter inovador e revolucionário do texto, afirmando que a literatura brasileira seria outra com ele e que nada tinha sido produzido até então que se lhe pudesse comparar. Para ele, seria antes e depois de Pan América. E não teria havido o Tropicalismo (1968) sem a leitura prévia desta obra.
Vejam que importância ele atribui ao livro!
Ora (e quando se diz ora é porque haverá discordância), infelizmente vou ter de discordar de Caetano.
Em primeiro lugar, a massa impressa apresentada pelo texto - sem parágrafos - foi introduzida pelo chamado roman nouveau francês (1952), que antecedeu um pouco o livro de de Paula e já era tema de estudos do meu curso de Letras, em Literatura Francesa, no final dos 60. Não era, assim, recurso tão revolucionário.
Em segundo lugar, a despeito de conter em sua narrativa, personagens comunistas, agentes de repressão e espionagem, exércitos, guerrilheiros, CIA, nazistas e fascistas, o personagem-narrador (o texto é todo em primeira pessoa) é desprovido de ideologia, assim como o texto em sua totalidade. Diria mesmo que também não há Ética nas ações e nos comportamentos dos personagens na história narrada, apesar de atos por eles praticados que, aos nossos olhos, possam ter um quê de reprovação, como casos de pedofilia. Não há constrangimentos do personagem narrador em descrever suas ações neste sentido.
A seu turno, a fabulação fantasiosa e inverossímil, mais caótica que as histórias em quadrinhos de Robert Crumb - que veem à mente tão logo se começa a leitura -, não apresenta lógica, coerência ou sintaxe narrativa, parecendo produto de uma viagem psicodélica, movida por não sei que tipo de droga. E termina porque acaba, sem um desfecho que justifique o tempo que se gastou a ler. Como se todo o texto fosse produto de anotações inconsúteis juntadas, algum tempo depois, na composição do livro.
A narrativa rompe, também, com a lógica espacial, uma vez que, de uma frase para outra, a ação se desloca abruptamente de Brasília para a selva sul-americana, e daí para Hollywood, levando alguns personagens, abandonando outros, aparentemente sem um critério que se justifique na narrativa, a não ser a estilística do caos. Em boa parte, não se sabe mesmo onde ocorre a ação.
Já os personagens - figuras, sobretudo, do cinema americano das décadas de 50 e 60, com destaque para Marilyn Monroe, fixação do narrador - não guardam verossimilhança com pessoas, uma vez que morrem e revivem de forma aleatória no curso da história. Bem como se agigantam, se encolhem, inflam como balões e explodem, na narrativa alucinada do personagem-narrador.
Na linguagem literária propriamente dita, aquela de que o personagem-narrador se utiliza para contar a história e que estrutura a narrativa, é talvez onde estejam os maiores problemas, segundo meu ponto de vista.
O texto se faz arrastado pelo uso mais que exagerado - diria, mesmo, abusivo - do pronome sujeito, numa imitação tosca, e não vernácula, da sintaxe da língua inglesa. Há assim uma profusão de eu. Também repetem-se enfadonhamente palavras e expressões, em frases contíguas, produzindo uma dicção infantilizada e pesada estilisticamente, o que torna a leitura arrastada e maçante.
O exagero no uso da coordenação, em detrimento da subordinação, trabalha para que o texto, como estrutura frasal, se mostre pobre e incipiente, tal qual ocorre com alunos aprendendo a fazer redações.
Querer que tal tipo de frase seja inovadora é um equívoco. Sua estrutura está muito mais próxima à linguagem infantil do que da fala de um adulto razoavelmente desenvolto.
É como pretender, relativamente ao texto da música popular brasileira, descobrir avanços no texto do rap, do funk e do hip-hop, ou mesmo do chamado pagode romântico, diante da excelência poética que atingimos da década de 60 do século XX para cá. Ao contrário, penso mesmo que a poesia, ou letra, que acompanha estas novas manifestações se constitui numa regressão, numa involução, se comparada a qualquer texto produzido pela MPB.
Por todos e apenas esses motivos, o livro de José Agripino de Paula não faz falta a nenhum leitor ou a nenhuma biblioteca. Não vi, não senti e não vislumbrei em sua leitura nada do que Caetano disse, ou que justificasse a pretensa idolatria que despertou, quando do seu lançamento.
Desgraçadamente isto só vem demonstrar a distância que há entre as cabeças de ídolo e de fã.
Não li o livro, não vou ler, mas concordo, tenho personalidade e sua análise foi brilhante. É tudo lindoooo...como diria o Caê.
ResponderExcluirGrato pela dica, manterei distância.
ResponderExcluirEnxergo uma necessidade quase inerente de verossimilhança. Não espere que uma obra "lhe diga algo". A ela, cabe apenas "ser"...
ResponderExcluirRespeito seu ponto de victa possivelmente bem argumentados, não estou criticando-o, apenas dialogando.
Vi muito pudor em sua análise, estético e semântico. Apenas isso.
Quanto a assimilação/compreensão da obra; não espere que toda literatura seja "José de Alencar".
Forte abraço e parabéns pelo blog.
Obrigado por sua ponderação, Anônimo. Quanto a José de Alencar, confesso-lhe que nunca tive paciência de ler, embora tenha tentado.
ExcluirSou devota de Caetano, e me interessei pelo livro. Então, um belo dia um amigo aparece em casa com ele nas mãos. Não deu outra! devorei rapidinho...A narrativa é bem alucinógena, confusa e indigesta. Acho que estou digerindo até hoje. Mas, gostei bastante dos delírios de José Agrippino de Paula. Esse lance meio nonsense, tem a ver com a esquizofrenia do autor, que foi diagnosticada algum tempo depois e ele passou o resto da sua vida achando que estava nos anos setenta...
ResponderExcluirEstá explicada a alucinação. Obrigado, Leila!
ExcluirHá gente que se dedica a descobrir feiticeiros. Não vi muita graça na produção de alguns badalados beatnikes americanos, p. ex. Prefiro criadores exuberantes na linha de Borges, Callado, Rosa etc. Temos tantos escritores talentosos e criativos que sequer são entrevistados pela Globo News, a exemplo de Perce Polegatto, Carlos Emílio Correira Lima etc.
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