27 de fevereiro de 2011

POR QUE ME APAIXONEI POR UM CAFAJESTE


Vasily Tropinin, Guitarrista, séc. XIX.
Esta história começa como letra de bolero, trilha sonora de casas suspeitas e alcovas pecaminosas. Mas isso é só a maneira de dizer. Longe estava da personagem principal qualquer ato que lhe pudesse manchar a reputação. Talvez apenas certa ingenuidade, que não se coadunava com as proporções físicas de que era portadora nossa afetivamente frágil heroína.

Pois muito bem! Rosilene não governou seu coração distraído com os devidos cuidados e foi parar nos braços de um tal Roberto Carlos, sósia do cantor famoso, cujo nome de batismo, na verdade, era Silas, seguido de Gomes da Silva, o que não diz muito de sua origem, de seu passado ou de suas pretensões. Gomes da Silva há aí aos milhões por este Brasil afora. Só este narrador conhece uns tantos e é parente de mais outros, pelos quais não se aventura, nem se aventurou nunca, em tempo algum, a meter a mão no fogo. Vê-se, por aí, que a história ficará malparada.
O falso Roberto Carlos vivia de biscates de voz e violão em bares pelas cidades do interior, amealhando dinheirinho pequeno que servia para suas necessidades mais imediatas. Até que chegou a Apiacá, cidade onde Rosilene distribuía sorrisos ao vento e encantava uns e outros com seu porte bonito, seu corpo bem feito, sua longa cabeleira e seus olhos de mel. Numa noite de seresta, movida a caipirinha e aipim com torresmo, Rosilene foi fulminada pelo olhar quarenta e três do dito cantor de voz anasalada e trejeitos do ídolo. Não soube desviar aqueles olhos desprecavidos dos sortilégios do amor e, naquela mesma noite, foi fisgada como um lambari solitário pelo anzol bem encastoado do seresteiro.
Depois de ouvir uma fieira de coisas bonitas e melodiosas em seu mimoso ouvido, foi dormir com a certeza de que encontrara o tal príncipe encantado dos contos de fada. Voltou no dia seguinte, um sábado amargurado, cheio de nuvens esquisitas pelo céu, para a continuação da seresta que começara na véspera, quando também esperava a sequência do emaranhado de metáforas e firulas literárias que o cantorzinho de meia tigela sabia de cor e salteado e distribuía sem parcimônia por onde passasse. Era só haver ouvidos de ouvir.
O Roberto Carlos de araque viu que sua cantilena fora proveitosa, ao perceber Rosilene na primeira mesa do mal iluminado recinto daquela casa comercial. E não pôde deixar de notar o olhar de mel sobre ele, toda vez que ela sorvia, via canudinho, mais um pequeno gole de caipirinha. Os olhos dela, com insuspeito encanto, passeavam por todo ele, como a estudar seus maneirismos de cantor de botequim.
Estava definitivamente apaixonada, a partir do segundo encontro e da terceira música, que ele cantava com tremidos na voz, a fim de não parecer muito com a gravação do seu ídolo (Que ele se permitia essas veleidades de ser original também!): As flores do jardim da nossa casa.
Rosilene viu na interpretação marota do espertalhão, sem disso se dar conta, uma declaração de amor, com pedido de casamento e o projeto do jardim que sempre sonhara ter em sua casa ideal. Resolveu, a partir daquele instante, que franquearia para ele todos os seus segredos mais recônditos, como se dizia antigamente na poesia romântica, todas as suas reentrâncias e protuberâncias, que não eram poucas, nem desprezíveis, pois uma quentura lúbrica percorria-lhe as pernas e os seios, indo parar não se sabe onde e nem é bom que se imagine. Tal fogo finalmente encontrara o bombeiro para apagá-lo ou, quem sabe, o pirotécnico – com perdão da insinuação maliciosa – para ainda mais acendê-lo. A partir de então, fosse o que Deus quisesse, pensou gozosa.
Esta narrativa – como a de Émile Zola em A taberna (L’assommoir) – pula o que é o interstício de felicidade, para encontrá-los, poucos meses depois, na sala da casa dos pais dela, numa feroz discussão sobre os rumos do casamento, ainda nos alicerces. As coisas começaram a esboroar-se, tão logo a lua de mel se findou.
Rosilene descobriu no príncipe encantado um sapo preguiçoso e coaxante, que passava o dia inteiro dedilhando o violão, à procura do acorde perfeito, para cantar pelos bares das cidades próximas, a troco de um cachezinho mixuruca, que não dava para as compras do mês, e ainda tinha de ouvir, por ligações telefônicas anônimas, referências desabonadoras à conduta do mau marido que arranjara, só porque não prestou atenção aos sinais que a todos eram evidentes, menos a ela.
O seresteiro tinha orgulho de jamais ter tido carteira de trabalho assinada, coisa que para ele depunha contra sua condição de artista da MPB, ainda não reconhecido, é verdade, mas em vias de estourar na mídia de todo o país. Era só um olheiro mais talentoso vê-lo cantar. Repetindo pela enésima vez esse argumento para Rosilene é que recusara emprego de balconista no mercadinho do bairro e, assim, permanecia de calção de pijamas quase o dia inteiro, enquanto a mulher saía para trabalhar no salão de beleza da Vanilda, onde fazia unhas, ralava calcanhares e tirava calos das freguesas.
Ali também aproveitava a oportunidade para enfileirar suas mágoas para cada uma delas. Umas ouviam, outras davam pitaco em sua vida. Algumas diziam “marido é isso mesmo, uma praga que não vale nada, bem que abandonei o meu”. Outras lhe davam notícias das reinações que ele armava por onde passasse, sempre segundo “alguém que disse, eu só ouvi, mas não posso revelar quem, você sabe como é, mas que é verdade, lá isso é, porque quem me disse não tem vício de fazer fofoca da vida alheia”. E, por esse disse-me-disse infernal, foi Rosilene pondo-se a par de todas as armações do tal Silas Gomes da Silva, como na certidão de casamento, cuja fama de mulherengo, prevaricador, mandrião, conquistador barato se alargava a cada conversa que ouvia, a cada pergunta que formulava, a cada sítio que frequentava.
Acabou por descobrir que o tipinho reles ficara noivo de duas moças ingênuas como ela, em duas cidades diferentes, Guaçuí e Alegre, por onde soltava seus trinados de galo-da-campina. Para lá rumou com a cópia de seu atestado de mulher traída, nos conformes da legislação civil em vigor, para mostrar a cada uma delas a cacimba seca onde elas estavam atirando seus baldes, na intenção de colher água fresca. Dali não sairia nada, asseverava ela a uma e outra, embasbacadas com a revelação.
- Mas se quiser ficar com ele – aquele imprestável –, pode ficar. Aliás, é um favor que você me faz. Só vim avisar, para você saber com que tipo se meteu.
Este narrador deve confessar que já viu situação parecida - inclusive com gente de sua própria família -, mas se exime de dar nomes aos bois, porque as barras da justiça estão aí para exigir-lhe comprovação com fotos, flagrantes, testemunhas e outras coisas mais. Mas que acontece, isso lá acontece!
Voltando à Rosilene e às noivas desavisadas, pode-se garantir que não houve maior constrangimento entre elas do que a constatação de que todas eram umas bobas crédulas, de uma ingenuidade quase angelical, incapazes de distinguir entre um cavalheiro e um cafajeste, desde que este último esteja apetrechado de todas as maquinações que um homem mesquinho é capaz de engendrar.
Se ele ficou sozinho? Só por uns tempos. Até acertar seus acordes e trinados em outros lugares e encontrar moças desavisadas, à procura do seu príncipe encantado. E tudo que caísse na rede seria peixe!

3 comentários:

  1. Convenhamos, Silas era (ou é) um grande artista. Como todo vigarista, conta com a cobiça da vítima.

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  2. É verdade! Mas só há malandro, porque há trouxa, não é mesmo?

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  3. É, mas lá em São José do Calçado ele não baixou, que sairia coberto de pescotapas. Belo texto!

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