3 de fevereiro de 2011

NOVA HISTÓRIA DO DILÚVIO

Naquele tempo, lá para trás de quando foi escrito o rascunho da Bíblia, vivia na região da baixa Mesopotâmia um tal cidadão de nome Noé, nascido no local denominado Churupaque, a meio caminho entre Uruk e Nippur (Hoje, aquilo tudo está tomado por campos de petróleo e discórdia.). Era por volta do ano 4000 a.C., se não me enganam as pesquisas empreendidas. É tempo à beça!
Noé já era casado, velho de muitos anos e pai de três filhos, quando foi avisado pela defesa civil da época de que haveria uma chuva muito forte, ou melhor, um dilúvio, capaz de inundar tudo. Pelos radares de então, o controle meteorológico identificou precipitação pluviométrica acima da média dos anos anteriores. O próprio chefe da defesa civil, cargo que acumulava com o de Deus, avisou diretamente a Noé, cidadão que estava em dia com suas obrigações, todos os impostos pagos, sem pendências com a justiça e a polícia.

Arca de Noé, em harissa.com.
O resto da população, um bando de inadimplentes que vivia em áreas de risco, apenas soube do aviso pelo próprio Noé, que resolveu alertar para o comunicado sobre o tempo. E todos riram daquele abestado, que garantia conversar diretamente com o Chefe.
No caderno de encargos cedido pela defesa civil, estavam as orientações precisas para a construção de um barco, cujo projeto já veio pronto, bastando a Noé a sua execução.
Como fosse o incontestável chefe da família, Noé determinou a seus filhos, Sem, Cam e Jafé, desmatarem um bosque próximo, já com a licença do instituto do meio ambiente daquele tempo concedida (além de Deus e comandante da defesa civil, também era o diretor do instituto) especificamente para aquele fim. O pessoal do ministério público foi orientado a não perturbar os trabalhos, com ações protelatórias e requisição de estudos de impacto ambiental inconclusivos. Dali a pouco não haveria mais meio ambiente mesmo!
A clareira aberta no bosque funcionou como estaleiro. Esse fato chamou ainda mais a atenção dos vizinhos, que concluíram que Noé, já beirando os novecentos anos, enfim estivesse caduco, seguramente com o Mal de Alzheimer, conforme o maledicente Baruc garantiu para Basileu, Galateu, Meroveu, Queromeu, Jamorreu e Zebedeu, desocupados e imprevidentes, na roda de vinho da taberna próxima, baseado no fato de que o mar, além de Morto, estava a uma boa distância daquele local e, pelo tamanho do barco, não havia, nas imediações, rio capaz de suportar seu calado. E começaram a zombar do dedicado Noé. Esta maledicência se alastrou como tiririca entre o pessoal da comunidade, que era como eles chamavam o aglomerado de casas encarapitadas nos morros adjacentes.
A zombaria aumentava, à medida que crescia a barca, que Noé resolveu chamar de arca, porque ela começava a parecer um grande baú, isso se não estivesse enganado na interpretação do projeto.
Por não depender de nenhuma subvenção oficial, de nenhum repasse de verba, de nenhuma agência controladora da atividade, para levar a cabo a construção da arca, o serviço ficou pronto no prazo previsto, com a qualidade esperada. E, tão logo levou para dentro um casal de cada espécie de bicho que havia nas cercanias, mais os filhos, noras e netos, também conforme recomendava o caderno de encargos, Noé mandou fechar a porta de acesso, que calafetou com betume de boa qualidade, já muito abundante ali, também aplicado em todas as juntas do madeirame.
Como se sabe, durante quarenta dias e quarenta noites, o céu literalmente desabou sobre a região e causou devastação nunca jamais vista em tempo algum. Tanto que até hoje a história circula por aí. Choveu tanto que esgotou o estoque de água da região: aquilo é um deserto até hoje.
Como era de se esperar pelo andar da arca, isto é, pelo navegar da história, ou melhor, pelo andar da história e o navegar da barca, só a família de Noé se salvou. Não houve, portanto, flagelados, desabrigados, desalojados, bem como voluntários abnegados, doadores solidários, repórteres investigativos e prefeitos espertalhões tentando faturar algum. Como se diz modernamente: fodeu tudo!
Para comemorar o sucesso da empreitada, Noé tomou um pifão de vinho, de suas próprias vinhas (O que deve ter ocorrido muito tempo depois, já que tudo tinha sido destruído, e vinho não é como cerveja: não se consegue assim num passe de mágica.), e dormiu pelado. Seu filho Cam, em vez de cobri-lo, saiu espalhando notícia do papel miserável do velho. Seus outros irmãos acorreram à tenda de Noé, cobriram-no, sem dirigir o olhar sobre o pai.
Por causa desse mau passo de Cam (que devia ser o miserável descente direto de Caiml!), Noé o amaldiçoou e o expulsou de casa com a família, os cachorros e os servos. É dele, segundo consta, que descendem os povos árabes, com quem os descendentes de Sem, os hebreus, mantêm uma quizília que nem o próprio Criador (o mesmo que deu o alerta lá atrás – Ele acumulava muitas funções!) conseguiu resolver até o momento em que esta edição era fechada.

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