12 de maio de 2012

VÃOS AMORES PERDIDOS

Paixões e amores não existem para se perderem, embora isto ocorra com uma frequência assustadora nos dias de hoje. Pode-se até dizer que as paixões são mais voláteis e que os amores resistem mais ao tempo. Pode ser que assim seja!

Pois os seres humanos fomos talhados para eles. E também para o ódio e o desprezo, que são, na matemática afetiva, mais ou menos, os valores negativos daquelas quantidades positivas.
E nos apaixonamos e caímos de amores por outro semelhante nosso – hétero ou homo, conforme a orientação –, pelos bichos e plantas que nos estão próximos, pelas coisas que acumulamos ao longo da vida, por ideias alheias, filosofias novas e antigas, ideologias de todos os matizes, comidas, bebidas, lugares, edificações, obras de arte em geral, e por aí afora. O nosso negócio é pegar gosto, paixão, amor, por aquilo em que acreditamos, que desejamos, com que sonhamos.

E tais amores e paixões se manifestam em vários calibres: uns mais, outros menos, uns mais equilibrados, outros mais avassaladores. Todos, no entanto, nos marcam de forma inapagável.
Isto tudo me veio à consideração – às vezes, sou dado a considerações –, ao passar de ônibus diante do lugar onde, há muitos anos, funcionou o bar mais gostoso que já frequentei: o Quatro Gatos, em Niterói, na Rua Presidente Domiciano.

No lugar, agora, está um tapume contornando o terreno em que se erguia a velha casa de moradia que, no fim dos anos 60, foi transformada em bar. Primeiro, com o nome de Patati Patatá; logo depois, com a denominação que deixou saudades.
Quando passei a frequentar, o Quatro Gatos já havia trocado de mãos. Os quatro sócios – os possíveis gatos – venderam-no para uns amigos meus – Wagner, noivo de Cristina, irmã de Arnolfo e Chico, todos sócios no empreendimento. Não me ocorre agora se Paulinho, um irmão mais novo, também fosse sócio. Sei apenas que Antônio, ainda adolescente, não fazia parte do staff da casa.

E o mais interessante disso tudo é que esses quatro irmãos – os três primeiros foram meus alunos na faculdade (Chico chegou a dar aulas lá, posteriormente, a meu convite) – eram hábeis artistas, embora ainda jovens: músicos, compositores, poetas, pintores, desenhistas. Cada um com seu estilo.
Talvez por causa de toda essa habilidade, buscaram fazer do Quatro Gatos, numa época em que Niterói era tão carente de entretenimento, um ponto de encontro musical.

Como eles fossem oriundos de Itaperuna, no noroeste do Rio de Janeiro, o local era frequentado por vários jovens da região, muitos dos quais músicos, cantores, a procurar espaço para mostrar sua arte. Lembro-me perfeitamente de Cadinho, cantor e violonista; Piredda, acordeonista; e até mesmo Paulinho, Arnolfo e Chico, violonistas, cantores, compositores. E uma jovem itaperunense já falecida que, por sofrer de obesidade mórbida, era muito gorda, mas cantava com uma das vozes mais singelas que se podia ouvir.  E, com frequência, lhe pedíamos para cantar Cajuína, de Caetano Veloso, fechando a noite de shows de outros artistas, pois ela estava sempre lá.
No Quatro Gatos, estiveram, dentre outros, Xangai, que tinha lançado seus primeiros trabalhos; Fátima Guedes, já consagrada como compositora e cantora; Taiguara, muito boicotado pelo regime militar de então; e o grande João do Vale.

João do Vale (em sombaratinho.com).

A respeito da presença de João do Vale, ocorreu um fato interessante.
Naquela noite de sábado de verão, Niterói e Rio de Janeiro sofreram uma tempestade de alagar ruas e praças.

Quando passou a chuvarada, eu e minha irmã Cristina nos dirigimos para lá – tínhamos uma reserva. Niterói ainda estava se recompondo, naquele momento.
Chegamos, acomodamo-nos em nossos lugares e pedimos uma bebida para aguardar o início do show. Wagner veio dizer que João do Vale estava atrasado por causa da chuva.

Daí a pouco, chega, um tanto esbaforido, nosso conterrâneo Beto Travassos, acordeonista, compositor e cantor impetuoso , um pouco mais novo que eu.
- Aquele neguinho já chegou? – perguntou ele com seu jeito característico.

Então eu o informei sobre o atraso justificado do astro da noite.
- Então vou correndo em casa, pegar minha sanfona. Porque, pra mim, é Deus no céu e João do Vale na terra.

Chegou João do Valle daí a alguns minutos. Beto veio em seguida, com a sanfona a tiracolo.
O show da noite seria voz e sanfona. Contudo o acordeonista do João, que não viera com ele, estava ainda mais enrolado no trânsito, por causa das ruas cheias. E providenciou uma ligação telefônica para informar que se atrasaria um pouco mais.

Passado um bom tempo, sem que o instrumentista chegasse, e devido à espera já longa dos clientes do bar, Beto resolveu oferecer seus serviços musicais ao cantor-compositor, só pelo prazer de tocar com o ídolo.
- João, sei todas as suas músicas. Se quiser, eu posso acompanhar.

Beto fez pequena demonstração de sua habilidade e conhecimento, e João aceitou de pronto, porque não tinha certeza de quando seu acordeonista chegaria.
Humildemente, Beto não dividiu o pequeno palco com João. Ficou sentado numa das primeiras cadeiras do salão.

Quando João soltou a voz para cantar seu grande sucesso, em parceria com Luiz Vieira, Na asa do vento, Beto correu o dedo nas teclas e achou o tom meio esquisito do nordestino. Apanhou de primeira, ao que João olhou para ele com um sorriso de aprovação.
Eduardo Travassos, seu irmão mais velho já falecido, numa mesa ao lado da minha, disse sorrindo, também em sinal de aprovação:

- Esse é o Beto! Não perde uma! Tem um ouvido incrível!
E demos uma boa risada.

Lá pela quinta música, chega o sanfoneiro retardatário. Senta-se no palco, atrás da atração da noite, e tira do estojo um instrumento que mais parecia um piano de peito, tal era a quantidade de teclas da mão direita.
Pensam que Beto se recolheu à condição de plateia? É ruim! Dividiu a cena instrumental com o profissional e, posso garantir – Eduardo, que também era músico, e minha irmã confirmaram: ele conseguia pegar o tom de João do Vale antes do sanfoneiro oficial.

Hoje o Quatro Gatos – um dos amores perdidos – é apenas uma boa lembrança de um tempo duro (ditadura militar), que funcionou muito como válvula de escape para nossa frustração política, e onde a música estava a serviço da estreita liberdade daqueles dias.

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