Quando fazia o curso de Letras, entre os anos de 1968/1971, fui como que doutrinado a ter pavor a adjetivos.
Os estudos literários de então – não sei os de agora, pois não frequento bancos escolares há muito, nem ministrei aulas de Literatura ou Teoria Literária – pintavam o adjetivo como o patinho feio da linguagem literária. Era um pobre coitado!Propugnava-se por uma linguagem ascética, asséptica, anoréxica, praticamente um ambiente de UTI na frase, que deveria conter o menos possível de adjetivos, sobretudo aqueles chamados de valorativos (como os três usados no início deste parágrafo), por serem de caráter subjetivo, a servirem ao autor para a emissão de juízo de valor acerca do que é dito. Como se ao autor, o dono do texto, não se permitisse manifestar ponto de vista.
É bem verdade que não se pode escrever sem adjetivação, ainda que seja possível minimizar sua presença no texto. É possível, por exemplo, substituir um adjetivo por uma locução adjetiva, feita com substantivo. Lembro, por exemplo, uma expressão de O coronel e o lobisomem, de José Cândido de Carvalho, em que tal recurso é recorrente: “a rinha era de conforto”, em vez de “a rinha era confortável”.
De qualquer forma – “de conforto” ou “confortável” –, a expressão adjetiva está lá.
É que, basicamente, a língua é a codificação em palavras da realidade a ser comunicada. E a percepção que se tem do mundo passível de ser traduzida em linguagem resume-se – penso eu – a: coisas e seres (substantivos), a qualidade das coisas e dos seres (adjetivos), ações e fenômenos (verbos) e a qualidade das ações e dos fenômenos (advérbios). Ou melhor, para sermos rigorosos, aquilo que o falante entende como coisas, seres, ações, fenômenos e qualidades.
Fica claro, por isso, que os adjetivos são classe de palavra extremamente necessária, como se fossem – mal comparando – uma das cores básicas do espectro visual. Constituem, com as outras três classes, o quadrilátero que estrutura a frase – unidade básica da comunicação linguística:
substantivo + adjetivo + verbo + advérbio > frase.
Todas as outras demais classes são apenas vocábulos gramaticais que se prestam a estabelecer as relações sintáticas entre essas, as verdadeiras palavras, com conceito do mundo externo à língua.
João Cabral de Melo Neto, um dos nossos maiores poetas, sempre foi badalado nos meios acadêmicos pelo fato de que sua linguagem é praticamente isenta de adjetivação. Ele se tornou o exemplo da expressão seca, enxuta.
Gosto muito de João Cabral. É um grande poeta, sem dúvida. Mas não é pelo fato de abrir mão da adjetivação como um traço de seu estilo. Há outros componentes muito mais interessantes, como o domínio do ritmo e da melodia, a precisão da palavra empregada, o universo intelectivo de seus textos, o equilíbrio entre conteúdo e forma, qualidade primordial no texto poético.
Custei algum tempo para fazer as pazes com os adjetivos, por conta do trauma da doutrinação a que fui submetido. Apenas após alguns anos na atividade de professor, é que tive a visão convicta que expressei acima sobre as classes de palavras.
É claro que um texto não pode estar calcado na adjetivação, sobretudo se ela é repetitiva, obsoleta, enfadonha (mais três adjetivos que usei aqui, viram?).
O adjetivo bem achado, bem colocado, é como uma incrustação bem feita de um detalhe numa peça maior do artesanato da palavra.
É por esta razão que nos meus textos – contos e crônicas, sobretudo – uso bastantes adjetivos e sinto que eles mais colorem, que desbotam minhas frases.
Pode ser que, um dia, eu pense diferentemente, mas por enquanto não posso prescindir desse meio vocabular que a língua me oferece aos milhares.
Todos os que escrevem com certa consciência crítica naturalmente fazem isto, e cada um segue o que lhe pareça mais adequado.
Com mais ou menos adjetivos, o texto precisa ser criativo e ter alguma coisa de ineditismo, para que possa agradar. Porque ninguém escreve para ser taxado de chato. Ainda que assim possamos ser julgados.
Marc Chagall, Le poète Mazin (séc. XX), em canais.sol.pt. |
Papo muito bom. Concordo, o adjetivo é a cor da frase.
ResponderExcluirIsto é que é uma lição! Vou ver se aprendo alguma coisa pois bem preciso. Bem-haja.JV
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