Na véspera chovera muito, e a temperatura dera
uma queda vertiginosa, pela metade. E ele não saíra de casa.
Aproveitou que eu estava sentado à entrada do
estabelecimento comercial, que se constitui praticamente por uma passagem
estreita entre a rua e o pátio interno do mercado, onde se localiza o Melado's,
para puxar alguns dedos de prosa.
Talvez seja do regulamento geral de bares,
botequins, tendinhas, biroscas e pés-sujos, que todos devam puxar papo uns com
outros, de modo a manter a chama eterna da conversa fiada.
O aperto do local é tanto, que torna íntimo até
mesmo o freguês que ali chega pela primeira vez. E, definitivamente, não se
pode considerar atentado violento ao pudor qualquer esbarrão condicionado pelo
estreitamento do lugar. Eu mesmo posso considerar-me um cliente quase
preferencial. Já houve caso de, ao me encontrar com o proprietário numa agência
bancária, ouvir dele a reclamação simpática:
- Tá sumido, doutor! Aparece lá!
Por isso é que, talvez, Heraldo também me
considerasse velho conhecido, para vir desfiar algumas lamúrias de sua vida.
Devia ter-me visto dando sopa por ali, de outras vezes em que estive na cidade.
- Ontem estava com trinta e oito de febre.
Levantei para fazer um mingau de fubá, que não ficou cozido direito e acabou me
dando uma azia danada. Aí tive que chupar uma banda de limão para cortar a
azia.
Devo ter feito cara de quem chupara o limão
naquele instante, porque ele se preocupou em afiançar que era tiro e queda para
o desconforto estomacal.
- Não há nada melhor do que limão!
E pôs a culpa no mau cozimento do mingau ao fato
de ser um homem sozinho. Se tivesse uma mulher que cuidasse dele, isto não
teria acontecido. Mulher tem sempre maior cuidado com seu homem, sobretudo
quando ele está acometido por algum mal-estar.
Fiquei só ouvindo a lamentação do Heraldo, entre
um gole e outro de cerveja, entrecortado por uma lambida numa cachaça braba, curtida
com casca de laranja lima, e tira-gosto de costela de boi cozida na pressão.
- Minha mulher fugiu de casa. Foi atrás de um
homem por quem ficou apaixonada pela Internet. Vê se pode? Uma mulher de
sessenta anos ficar apaixonada por um homem pela Internet!
E desfiou outros rosários de lamentações,
lembrando-se da época em que era comerciante. Ele me disse ter adquirido de meu
sogro a venda de secos e molhados que ficava localizada na Praça dos Boêmios,
na entrada da Rua do Café. E, como mau comerciante que sempre fora, acabou por
quebrar.
- Nunca tive... – e, segurando o copo, meneou os
quadris, para substituir a expressão pelo gesto.
Eu é que completei:
- Jogo de cintura!
- Isso mesmo! Seu sogro tinha e, por isso,
ganhou muito dinheiro ali. Eu só quebrei!
Os filhos, todos casados, moram em outras
cidades, bem mais distantes e ele, então, sem a mulher fujona, morava na mesma
casinha de antes, que ficara muito grande para sua solidão.
A mulher, como ocorre comumente nesses casos,
deu com os burros n’água – “Bem feito pra ela!” – e voltou à cidade, apenas com
a roupa do corpo, indo morar de favor na casa de uma irmã casada.
Mas ele não continuará na cidade. Está vendo
alguma coisa na cidade vizinha e, se tudo der certo, vai morar lá. Está examinando
umas possibilidades, para, então, decidir. Para a ex-mulher, contudo, não há
salvação, não há volta.
- Perdoar, eu perdoo; mas reconciliação, jamais!
E sorveu com vontade o último gole daquele
líquido de gosto amargo, como sua própria vida. O que fazer nesses casos? É tocar
o barco e, até mesmo, mais para frente, tomar outro mingau de fubá mal cozido,
ter mais uma azia e chupar mais meia banda de limão, para parecer que tudo tem
jeito. Menos a morte!Jan Steen, Fête dans la taverne (1620), em arpoma.com. |
Se la vie...pobre heraldo!
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