4 de maio de 2012

CRÔNICAS DE MIRACEMA III - MINGAU MAL COZIDO PROVOCA AZIA

Heraldo resolveu tomar a última dose do quinado de fabricação do dono do pé-sujo, Melado, antes de voltar para casa. Devia ser a terceira porção daquele líquido rubro e opaco, naquela manhã de quarta-feira fresca de outono.

Na véspera chovera muito, e a temperatura dera uma queda vertiginosa, pela metade. E ele não saíra de casa.
Aproveitou que eu estava sentado à entrada do estabelecimento comercial, que se constitui praticamente por uma passagem estreita entre a rua e o pátio interno do mercado, onde se localiza o Melado's, para puxar alguns dedos de prosa.

Talvez seja do regulamento geral de bares, botequins, tendinhas, biroscas e pés-sujos, que todos devam puxar papo uns com outros, de modo a manter a chama eterna da conversa fiada.
O aperto do local é tanto, que torna íntimo até mesmo o freguês que ali chega pela primeira vez. E, definitivamente, não se pode considerar atentado violento ao pudor qualquer esbarrão condicionado pelo estreitamento do lugar. Eu mesmo posso considerar-me um cliente quase preferencial. Já houve caso de, ao me encontrar com o proprietário numa agência bancária, ouvir dele a reclamação simpática:

- Tá sumido, doutor! Aparece lá!
Por isso é que, talvez, Heraldo também me considerasse velho conhecido, para vir desfiar algumas lamúrias de sua vida. Devia ter-me visto dando sopa por ali, de outras vezes em que estive na cidade.

- Ontem estava com trinta e oito de febre. Levantei para fazer um mingau de fubá, que não ficou cozido direito e acabou me dando uma azia danada. Aí tive que chupar uma banda de limão para cortar a azia.
Devo ter feito cara de quem chupara o limão naquele instante, porque ele se preocupou em afiançar que era tiro e queda para o desconforto estomacal.

- Não há nada melhor do que limão!
E pôs a culpa no mau cozimento do mingau ao fato de ser um homem sozinho. Se tivesse uma mulher que cuidasse dele, isto não teria acontecido. Mulher tem sempre maior cuidado com seu homem, sobretudo quando ele está acometido por algum mal-estar.

Fiquei só ouvindo a lamentação do Heraldo, entre um gole e outro de cerveja, entrecortado por uma lambida numa cachaça braba, curtida com casca de laranja lima, e tira-gosto de costela de boi cozida na pressão.
- Minha mulher fugiu de casa. Foi atrás de um homem por quem ficou apaixonada pela Internet. Vê se pode? Uma mulher de sessenta anos ficar apaixonada por um homem pela Internet!

E desfiou outros rosários de lamentações, lembrando-se da época em que era comerciante. Ele me disse ter adquirido de meu sogro a venda de secos e molhados que ficava localizada na Praça dos Boêmios, na entrada da Rua do Café. E, como mau comerciante que sempre fora, acabou por quebrar.
- Nunca tive... – e, segurando o copo, meneou os quadris, para substituir a expressão pelo gesto.

Eu é que completei:
- Jogo de cintura!

- Isso mesmo! Seu sogro tinha e, por isso, ganhou muito dinheiro ali. Eu só quebrei!
Os filhos, todos casados, moram em outras cidades, bem mais distantes e ele, então, sem a mulher fujona, morava na mesma casinha de antes, que ficara muito grande para sua solidão.

A mulher, como ocorre comumente nesses casos, deu com os burros n’água – “Bem feito pra ela!” – e voltou à cidade, apenas com a roupa do corpo, indo morar de favor na casa de uma irmã casada.
Mas ele não continuará na cidade. Está vendo alguma coisa na cidade vizinha e, se tudo der certo, vai morar lá. Está examinando umas possibilidades, para, então, decidir. Para a ex-mulher, contudo, não há salvação, não há volta.

- Perdoar, eu perdoo; mas reconciliação, jamais!
E sorveu com vontade o último gole daquele líquido de gosto amargo, como sua própria vida. O que fazer nesses casos? É tocar o barco e, até mesmo, mais para frente, tomar outro mingau de fubá mal cozido, ter mais uma azia e chupar mais meia banda de limão, para parecer que tudo tem jeito. Menos a morte!

Jan Steen, Fête dans la taverne (1620), em arpoma.com.

Um comentário: