14 de maio de 2012

CONTOS CURTOS ENTRETECIDOS, MAS NEM TANTO II

1. O último bolero que cantou, no Clube Recreativo dos Operários Anarquistas, teve sabor amargo. Chico Sete Cordas notou que ele desafinou, a voz trêmula, nos instantes finais: "Espérame en el cielo, corazón, si es que te vas primero". A mulher – a ex, melhor dizendo –, a essa hora, acendia uma vela para Nossa Senhora Desatadora de Nós.

2. A pouca coisa que levou, ao sair de casa, quase escorraçado pela mulher, coube no carro velho, uma Variant 1970, de uma indefinível cor que ele mesmo pintara, a poder de rolos e pincéis, e com buracos pela lataria, a placa dianteira amarrada com arame ao para-lama carcomido pela ferrugem. Seguiu em direção a Campelo, onde dizia ter arrendado um sítio, com o dinheiro que recebera pelo divórcio. Iria criar cabritos.


Imagem em carasdepartirarir.fotoblogue.com.

3. Aliviada, porém tremendo um pouco mais do que o normal pelo mal de Parkinson, ela acendeu a vela diante da imagem de Nossa Senhora Desatadora de Nós, que pediu à filha para trocar na loja. Ela não usava o verbo comprar para o caso de coisas que considerava sagradas, como a imagem. Pediu ao padre que a benzesse e a instalou sobre a cômoda do quarto, em cima de um tapetinho de veludo vermelho. O nó de seu casamento estava, por fim, desatado! Doravante era a sua santa de devoção.

4. Morou no porão da casa, misturado aos trecos sem serventia, tal como ele, durante o andamento do processo de divórcio. E agora estava arrumando as coisas que lhe sobraram do distrato de casamento: a roupa do corpo, a caixa de ferramentas, incluído um serrote velho, e setenta mil reais, com uma parte tomada emprestada ao banco pela mulher, para pagar por sua própria liberdade. Ele nunca tinha visto tanto dinheiro na vida, pois sempre vivera na aba dela, herdeira das coisas todas que o casal possuía de bens, como a casa em que moraram por tantos anos. O carro velho era seu, e a mais ninguém interessava.

5. A filha solteira, que morava com os pais, ainda olhou da janela do segundo andar da casa assobradada, tombada pelo patrimônio municipal, a velha Variant relutando em sair do lugar, soltando uma fumaça escura, a lhe denunciar graves problemas no motor. Observou quando virou à direita, o pai estendendo o braço para fora, a fim de indicar a direção, em substituição às setas, cujas lâmpadas estavam queimadas há tempo. E não teve nenhuma reação de tristeza. Apenas estava um pouco amarelada, reflexo da cor da parede esbatida pelo sol sobre sua pele branquíssima.

6. No pé sujo do Melado, um botequim espremido em espaço exíguo do Mercado Municipal, há um mês a história da separação andava em bocas de Matilde. Heraldo, aquele mesmo que foi abandonado pela mulher sessentona que se apaixonara por um bico-doce da Internet, trazia as notícias colhidas nos bailes do Operários. Passou a frequentar o clube da cidade com o intuito de estabelecer um paralelo entre sua vida de traído e a do cantor escorraçado, tendo por fundo musical boleros e sambas-canções. E, entre uma e outra dose do quinado de fabricação artesanal do birosqueiro, ainda tinha a coragem de dizer que o cantor saíra no lucro: embolsara uma quantia que ele também jamais vira.

7. Um mês depois da separação, ele foi visto na maior loja da cidade, comprando roupas novas com o auxílio daquela outra, da tal sirigaita da quitanda. Quem levou a notícia para a ex foi uma vizinha dada à incontinência verbal, que é um jeito brando de dizer que a tal é fofoqueira. O que, convenha-se, não fica bem para uma vizinha tão estimada. A ex deu de ombros, fez um muxoxo e disse não ligar para mais nada dele. E foi passar um café fresquinho, a fim de agradar a leva e traz, pois, no fundo, no fundo, gostava de saber quantos degraus ele ainda desceria.

8. Recentemente ele foi até a Farmácia Santo Antônio comprar preservativos, cremes, pomadas e aquela pílula azul, com a cara mais deslavada do mundo. E ainda charlou para o atendente sobre os planos para o futuro: “Isso é só o começo, Dorival! Agora, lá em casa, o pau vai quebrar, a jiripoca vai cantar. Tem carne nova no pedaço, Dorival. Vai subir cheiro de borracha queimada do meio dos lençóis, Dorival!”. O caixeiro, constrangido, teve de fingir um sorriso de aprovação com tanta pavonice, para não perder o cliente.

9. Ao saber que ele iria criar cabritos, a ex até se mostrou, de início, esperançosa de que o traste aprendesse a dar seus pulos com os bichos. Sempre vivera na sua aba, confortavelmente apoiado pela herança dos sogros e o salário de professora dela. Mas mesmo a maior herança não resiste a um gastão vaidoso como ele, amante de brilhantina cara e perfume esparramado pelo corpo. Tanto que ela teve de se valer de um empréstimo, para completar os setenta mil com que comprou sua alforria. Se vivos ainda, seus pais lhe teriam aplaudido a iniciativa, mesmo sabendo da enrascada da dívida. Até o cachorro da família não gostava dele. Sempre fora uma pessoa desamorável.

10. O bom cabrito não berra e, se bem cuidado, dá uma carne saborosa de bom valor no mercado. Cabrito está na moda, segundo ele. Nos planos estava também fazer queijo de leite de cabra, criar um laticínio de qualidade, que pudesse exportar para outras cidades, para outros estados. Sonhar não custa nada. E, agora, de posse daquela grana – já tinha diminuído um pouco, diante de umas emergências a enfrentar –, iria dar uma reviravolta em sua vida. Ao saber disso a ex caiu num riso convulso, incontrolável, de ter dor de barriga. Como, depois dos cinquenta, alguém que nunca fizera nada se transformaria de uma hora para outra? Ela até pagaria mais para ver.


Nenhum comentário:

Postar um comentário