Quando era
criança pequena lá em Carabuçu, viviam dizendo que o mundo não passaria de
2000.
Eu, que
havia nascido em 1946, fazia as contas e lamentava o fato de que não viveria os
então noventa e poucos anos de meu bisavô Papai Antonico, nem de minha bisavó
Mariquinha, também palmeando os noventa.Aliás, quanto à minha bisavó, ocorreram uns fatos engraçados. Foi ela fazer oitenta anos e resolveu juntar a descendência, porque julgava que não passaria dali. Eu era, por essa altura, um menino chegando à adolescência. Juntou foi gente.
Vovó Mariquinha era mãe de meu avô Juquinha e de mais uma montoeira de tios-avós. Casara-se três vezes, e três maridos enterrara com sua saúde de ferro, praticamente irritante. Herdeira de alguns bens dos três defuntos anteriores, teve um pretendente a quarto consorte que, avisado de que aquela velha era chave de cemitério, bateu em retirada, para que seu endereço não passasse a ser um singelo número, numa campa simples do campo-santo do morro da Coreia.
Dez anos depois, tendo visto que não morrera, resolveu dar outra festa de arromba, para comemorar os noventa, com o intuito de fechar o ciclo da vida, que, segundo ela, não passaria dali.
Aí eu já estava em Niterói e não fui à festa de vovó Mariquinha.
Ela estava completamente enganada. Passou acelerada pelos noventa e, uma vez visitando meus pais em Bom Jesus do Itabapoana, resolvi, instado por minha mãe, a ir vê-la em nossa vilazinha natal.
Cheguei a sua casa, na rua que adentra Carabuçu, para quem vai de Bom Jesus, e fui entrando pelo quintal, chamando por ela, que não estava no interior da casa.
Encontrei-a nos fundos do quintal, mexendo numas laranjeiras, examinando a floração. Ela tinha, então, noventa e nove anos e vivia sozinha, cuidando da vida que acumulara tempo afora.
Ela não me via há muito. E minha mãe me alertara sobre sua memória prodigiosa, que chegava mesmo a se lembrar de datas de aniversários de bisnetos.
- Bença, vó!
- Deus te abençoe, meu filho!
- Se lembra de mim, vó?
- Claro, você é o Saint-Clair da Zezé! Como é que vai, meu filho?
Um pouco depois disto, soube que vovó Mariquinha se mudara para Duque de Caxias, para onde tinha ido boa parte dos filhos que pusera no mundo, deixando em Carabuçu uma anedota, lembrada até hoje pelos mais velhos: “Dona Mariquinha foi embora para Caxias, porque disse que não tinha mais futuro em Carabuçu!”
Lá viveu até os cento e dois anos. E eu sempre implicava com uma colega de trabalho, moradora daquela cidade, dizendo que minha bisavó havia morrido lá, porque Duque de Caxias era uma cidade muito mortífera.
Agora, vejo meu pai, com seus recentes noventa e cinco anos, em pior situação que minha bisavó. A memória já lhe está sumindo, certa confusão mental desorienta sua compreensão do mundo, as pernas já não lhe ajudam como antes, homem vigoroso que era, com muita força física e, quando jovem, muito bonito. Temos uma foto dele, em preto e branco, com vinte e poucos anos, em pose de galã, que não devia nada a Marlon Brando em seus melhores dias - análise sem nenhum ranço de filhite aguda.
Hoje, por vezes, não nos reconhece, não reconhece a própria casa, está muito limitado fisicamente. Porém minhas irmãs e minha mãe se alternam em seus cuidados, com carinho, com sacrifícios, para que todos nós, através dele, passemos dos nossos dois mil. Uma meta que me assombrava em criança, mas que, em adulto, pude muito bem perceber que é apenas o limite de cada um.
Nenhum comentário:
Postar um comentário