SAÍ PARA COMPRAR CIGARRO, E MINHA MULHER FUGIU COM O PORTEIRO
É isso que eu lhe digo, doutor. Tinha ido ao botequim, a duas quadras da rua onde moro, em frente à pracinha, e quando voltei encontrei o bilhete infeliz no para-brisa do carro. É... o carro fica na rua, porque não temos garagem no prédio. O prédio só tem oito apartamentos e fica numa rua sem saída. Pequeno, ele. Eu sou o síndico há muito tempo. Ninguém mais quer pegar esse abacaxi. Aposentado, eles acham que tem de ser síndico, sabe como é? O porteiro fui eu mesmo que contratei, há uns oito anos, por indicação do vizinho do 202. Eu moro no último andar, no 401. O Marinaldo, esse é o nome desse desgraçado ali, até que era um bom empregado. Era porteiro, zelador, faxineiro, bombeiro, eletricista, uma espécie de faz-tudo no prédio. Acho até que fazia coisas demais. Enfim, era atencioso com todos, zeloso da função. O prédio estava sempre bem cuidado. Ajudava as pessoas a subirem com as bolsas de mercado, abria o portão para os mais velhos. Sempre de sorriso na cara. Parecia que trabalhava contente. Também, depois do que aconteceu, acho mesmo que era por isso. Esse contentamento tinha de ter uma explicação a mais, porque o salário não era lá essas coisas. E há quanto tempo isso acontecia sem que eu soubesse? Marido traído é mesmo uma praga, não é doutor? A gente é sempre o último a saber. Agora como é que eu vou voltar para casa? Com que cara vou olhar para os vizinhos? Todos se conhecem num prédio tão pequeno, o senhor sabe, não é? E aquele bilhete miserento no para-brisa do carro, com letras grandes: “Osvaldo, não me procure mais. Fui embora com o Marinaldo. Arranje outro porteiro. Lourdes”. E ainda teve o desplante de fazer recomendações. Se eu não fico no botequim fumando o primeiro cigarro da manhã e tomando um cafezinho com os amigos, talvez até pegasse os miseráveis no flagrante da fuga. E ela ainda levou a melhor mala que a gente tinha. Comprei há dois meses, pois planejava ir a São Lourenço com a excomungada. Sim, continuando, doutor... Aí, quando vi o bilhete, não cheguei a acreditar. Corri até a entrada do prédio, a uns cinquenta metros de onde tinha deixado o carro. Ele dorme na rua, conforme disse ao senhor. Não temos garagem no prédio. É um prédio desses antigos. Pois então... Corri até a entrada do prédio e gritei pelo Marinaldo, e nada de ele me responder. Chamei umas três ou quatro vezes, até que resolvi usar a chave do portão, que todo morador tem. Isso foi até uma providência que tomei – dar uma chave para cada morador –, para ajudar o desgraçado na sua função. A portaria estava abandonada. Em cima do balcão, outro bilhete. Agora do desinfeliz: “Seu Osvaldo, me desculpe! Marinaldo”. Só isso. Não pediu nem as contas. Não deu nem aviso prévio esse filhote de calango. Agora vou ter que arranjar outro. Depois, ele ia querer sacar o fundo de garantia, e eu ia meter a mão nas fuças dele. Ãh? Pois então... Voltei para o carro, liguei o motor e saí desesperado atrás dos dois. Eles não poderiam estar longe. Devia ter só meia hora que tinha descido para ir ao bar comprar o maldito cigarro. Pro senhor ver: até nisso o fumo prejudica, não basta a doença ruim no pulmão. Se tivesse ficado em casa, pode ser que a desgraceira não chegasse aonde chegou. Mas, pelo menos, não vou continuar sendo traído sem saber, não é? Sim... Aí quando entrei na rua principal, depois que saí da ruazinha onde moro, peguei velocidade para aproveitar o sinal que ameaçava fechar e que fica a três quadras da esquina. Daí só vi quando uma mala, muito parecida com a que tinha comprado para ir a São Lourenço, conforme lhe disse, bateu no para-brisa com força e voou para a traseira. Não reparei que um homem e uma mulher iam atravessar o sinal apressadamente. Mas, com o rabo do olho, percebi que uma pessoa de vermelho passou raspando a lateral do carro, do meu lado direito. Era aquela miserenta, no vestido novo que tinha comprado pra ela na promoção do shopping lá da Tijuca. Um vestido colado no corpo, com uma fenda atrás. Agora sei que não devia ter comprado aquele maldito vestido. Aquilo era um chamariz. E, para piorar as coisas também, a Lourdes não é uma mulher feia. Embora já com quarenta e poucos anos, como se diz aí, está com tudo em cima. E o senhor sabe, não é?, se a gente dá mole, é isso que acontece! Bom... como eu ia dizendo, na hora em que eu apertei o acelerador, para aproveitar o sinal, senti o impacto, a mala voando por cima do carro e aquela visão lateral avermelhada vindo de encontro à lataria. O Marinaldo nem vi, se é que o senhor acredita em mim? É mentira desse cara. Não tive intenção nenhuma de atropelar os dois. Ele disse que percebeu que eu ia jogar o carro em cima deles e voltou pra calçada. É mentira dele! Agora sei que esse comedor de rapadura com farinha é um grande mentiroso e fingido! Sou um homem pacato, de boa índole. Não tenho religião, não senhor, mas não seria capaz de matar nem uma galinha, com perdão da má palavra, ainda mais a minha mulher. Depois também ela não morreu. Meu carro ficou mais avariado do que ela. O vestido acabou, é verdade, mas ela só sofreu uns arranhões de leve. Ela me faz até lembrar um livro do Dalton Trevisan, Essas malditas mulheres. O senhor já leu, doutor? Então... Como? Se ela tivesse morrido...? Bem, não posso negar que até seria bom, porque a minha vergonha seria menor, mas eu não tive a intenção de atropelar ninguém. Isso o senhor pode acreditar. Ou o senhor prefere acreditar na palavra de um vagabundo ladrão de mulher alheia? Quem estava em delito eram os dois, e não eu. Estava desesperado sim, mas dentro do meu juízo. Não estava desatinado, mas um pouco apalermado. Pode acreditar, doutor! Agora o Marinaldo está inventado isso, de que eu queria matar os dois. Já falei pro senhor que sou incapaz de matar alguém. E agora, doutor, como é que vou voltar pra casa, ainda sendo acusado de tentar matar a Lourdes? Os vizinhos vão me achar um monstro. Talvez só um lá possa pensar que isso deveria ser feito. Ele é meio esquisito e acho que entenderia a situação em que me meti. Mas não tentei nada. Foi pura coincidência. É... eu saí atrás deles, fui procurar, mas sem intenção de fazer uma desgraceira. Já disse que sou homem de paz. E o senhor já imaginou que, se além de marido traído, eu ainda fosse parar na prisão como assassino? Seria muita desgraça para uma pessoa só. É isso, doutor, é isso! (...) Onde eu assino, doutor? Então posso ir? Não, não vou sair da cidade. Nem tenho motivo para isso. Não... não temos filhos. Eu sou oco, como se diz. Tá bom, doutor, fico aguardando, então. Meu endereço está aí e, assim que o senhor me chamar, volto para esclarecer mais coisas. Mas eu queria que o senhor me permitisse uma última palavra ali com o Marinaldo. Seu filho de uma égua, miserento, tomara que fique broxa pra nunca mais! Seu corno!...
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