6 de abril de 2011

GALO COM MACARRÃO

Ray é um péssimo vizinho, como há milhares, talvez milhões, por este Brasil afora, em cidades grandes ou pequenas, em vilas ou cafundós. Basta você ter um vizinho para começar a ter problemas. É o que há de mais certo para dar errado: ter vizinho!
Quem mora em prédio de apartamentos, seja o de baixo, ou o de cima, seja o da frente, ou o de trás, qualquer um deles, num dia qualquer, vai causar-lhe transtornos e aborrecimentos.
Não é diferente, quando se mora em casas de meia-água, em condomínios horizontais, em chácaras, sítios ou fazendas.
Lá haverá um vizinho pronto a incomodar.
Quando, nas Tábuas da Lei entregues a Moisés, o Senhor determinou que se amasse o próximo como a si mesmo, é porque já sabia como seria difícil suportar aquela pessoa nojenta que está ao alcance da sua borduna, do seu tacape, com a cabeça apta a receber a cacetada.
Ray, porém, fazia questão de ser um especialista na condição de mau vizinho. Não media esforços, para fazer o que estivesse ao seu alcance e subir no desapreço alheio.
Quantas vezes tinha pedido algo emprestado e não devolvido? Quantas vezes tinha permitido que suas criações atravessassem a cerca, para fuçar os canteiros de hortaliças? Quantas vezes se metera nas obras de melhoria da calçada, na correção das goteiras do telhado, na pintura do muro? Quantas vezes viera dar opinião, sem ser chamado, nos problemas da família; entrar, sem ser convidado, na hora do café da tarde? Eram vezes sem fim! Inúmeras, incontáveis! Se se fizesse livro de anotações, daria quase uma biblioteca.
Por último, para acrescentar mais um item no quesito incomodação, arranjou um galo miserento, com o relógio biológico desregulado, que começa a cantar por volta das quatro da madrugada e só vai dar fim à cantoria lá pelo final do dia. A função do penoso ocorre a intervalos regulares de dez minutos, com a goela do chanteclair a emitir um som estridente de taquara rachada, capaz de acordar defunto surdo dos dois ouvidos.
E, o pior: o vizinho não criava galinhas, para dar vazão aos instintos sexuais daquela ave excomungada. Isso talvez explicasse sua cantoria desregulada.
Mas pode deixar, seu Ray, que os dias de tenor do galo estavam contados!
Quando o filho, que mora em Macaé, foi passar o carnaval deste ano em Miracema, defrontou-se com o problema, para o qual deu solução gastronômica definitiva.
Depois de chegar às duas da madrugada do desfile do bloco carnavalesco Rola Cansada, foi acordado com a sinfonia desentoada do da crista vermelha. Por esse motivo, acometeu-se de tremendo mau humor vingancista, irmão menor do instinto assassino.
Destilando bílis o dia inteiro, arquitetou plano de sequestro do galo, naquela mesma noite.
Foi à quitanda do Zé Maria, onde comprou meio quilo de milho, um pacote de macarrão goela de pato, batata, cenoura, pimentão, alho-poró e massa de tomate e avisou à empregada que, naquele dia, haveria serão.
Em munizfreire.es.gov.br.
Capturou o penoso a poder de milho, passou a faca no gogó do bicho, colheu o sangue num prato de ágate, deu-lhe um banho de água fervente, despiu-o da cobertura plumária, esquartejou-o, lavou-o, cobriu-lhe as partes de uma mistura de sal, alho, vinagre, cebola triturada, pimenta-do-reino, gengibre em pó, alho-poró e vinho tinto, deixando-o descansar por algum tempo, após o que o meteu em panela de pressão, coberto pelo molho, em fogo alto, durante cerca de duas horas (O penoso era velho!), ao fim das quais, acrescentou o pacote de macarrão goela de pato,  as batatas e as cenouras picadas, acertou o sal e os temperos e cozinhou a mistura até amaciar a massa e engrossar o caldo, experimentou tudo, achou bom e partiu atrás do mineiro-pau Peru Encalorado, que passava diante de casa.
Voltou zonzo às primeiras claridades do dia seguinte; dormiu como um bisão americano; acordou lépido e fagueiro como um coelho, à uma da tarde; lambeu uma dose generosa de Menina do Rio e devorou o cantor descalibrado com arroz de alho e angu molinho, reforçados no azeite extravirgem e na pimenta malagueta, "como se fosse um príncipe".
Ray não riu mais e de nada mais achou graça nesse carnaval, mas prometeu, a partir da quaresma, criar gansos sinaleiros no espaço exíguo de seu quintal contestado.
A guerra do galo com macarrão apenas começara!

4 comentários:

  1. Crônica com mil e uma utilidades: história exemplar, personagens verossímeis e uma ótima receita de penoso.

    ResponderExcluir
  2. Saint-Clair, é fascinante essa história de vizinhos incômodos. O senhor é um mestre na arte das palavras.

    ResponderExcluir
  3. Louro Neves, obrigado pela visita e pelas palavras. Seja bem-vindo!

    ResponderExcluir