3 de abril de 2011

TONHÃO E TIÃO

Na venda do Argemiro, no centro da vila, Tião comia pé de moleque e discorria sobre o que sabia e não sabia da vida, com a empáfia de sempre.
Tonhão, seu cunhado, tropeiro dobrado dos pés à cabeça, chegou com cara de acompanhar enterro. Disse-lhe na lata, diante da venda cheia:
- Tião, vim te avisar que, se você tocar mais um dedo na Dozinha, vai-se ver comigo.
Tião também era tido como quebrador de pau, esquentador de fuça alheia, cheio de prosopopeias, e não se fez de rogado:
- Não se meta, Tonhão! A mulher é minha e, se não andar nos conformes, eu exemplo. Tou no meu direito de chefe de família, de marido. A lei tá do meu lado.
- Ó, gente! – E dirigiu-se Tonhão a toda a plateia presente. – Todos aqui são testemunhas de que eu avisei a esse estropício.
E saiu porta fora, deixando no ambiente um mal-estar indigesto, a que nem bicarbonato de sódio ou salicilato de bismuto composto dariam jeito.
Mal-agradecido como só, Tião nem se lembrou da dívida para com o cunhado: uma quarta de milho, fueiros para o carro de boi, uma arroba de carne no último ano para ajudar a cuidar dos bacuris, que era como o povo da terra chamava as crianças ainda miúdas.
- Esse é um desinfeliz que fica se metendo aonde não é chamado. Da minha vida, cuido eu, que não devo satisfações a ninguém. Ninguém paga minhas contas, nem põe comida na minha casa. Lá eu governo, ao meu sabor, ao meu capricho!
E, virando-se para o vendeiro:
- Seu Argemiro, quanto é a despesa?
Pagou a conta miúda, menor que seus bacuris – quatro ao todo, numa escadinha dos seis aos dois anos – , e também caçou o rumo de casa, porque, com a afronta sofrida, seu humor já tinha ido para o beleléu naquela noite.
Na venda, ficou um ar pesado, esquisito. Porém logo a conversa voltou ao normal e ninguém comentou o acontecido. Isso era encrenca de família e todos, tacitamente, concordaram em não opinar.
Não se passaram cinco dias e chega à casa de seu Berilo, pai de Tonhão e Dozinha, notícia de que o genro, mais uma vez, tinha sovado sua filha, por conta de bobagens sem a menor importância. Tudo motivado por excesso de pinga na cabeça.
Do alto de sua idade, ele não tinha mais condições de ir lá resolver a questão, se não fosse com um tiro de garrucha nos cornos daquele filho de uma égua. Por isso é que pediu a Tonhão que fosse lá assuntar o sucedido e tomasse as providências para retornar com a filha e os netos para sua casa, que lá ela era tratada como princesa, como sempre dizia.
Tonhão, ao ouvir o relato e o pedido do velho pai, começou a ter um afrontamento no peito, a cabeça girando mais que maxambomba de parque de diversão, a respiração acelerada. Passou a mão num pedaço de caibro velho, jogado no canto da tulha, umas correias que usava no arreamento da tropa, e foi-se em direção à casa da irmã.
Elias Vitalino, Homem a cavalo, coleção
do autor (em artepopularbrasil.blogspot.com)
- Dozinha, cadê aquele traste do seu marido?! Onde está aquela besta?!

A irmã, rosto inchado, olho roxo, previu tragédia das grossas e começou a chorar, pedindo ao irmão que não fizesse nenhuma besteira. Os dois bacuris maiores começaram a chorar, acompanhando a mãe, e daí a instante toda a casa era um choro só, como um coral.
- Fala, Dozinha, onde está a praga do seu marido, que eu quero acertar umas contas com ele agora?! Neste momento! E arrume suas tralhas que você vai pra casa do pai.
E falou tão alto e com tal autoridade, que Dozinha, apequenada diante da situação, miou baixinho:
- Foi tomar banho no valão.
Tonhão deixou a casa simples como um sargentão da volante do tenente Coaraci, dos duros tempos do Dr. Getúlio: peito aprumado, pernas firmes, olhos faiscando corisco para todos os lados, o pedaço de caibro e as correias na mão segura.
Num instante tinha chegado ao poço do valão, onde também tomara muitos banhos. Encontrou o cunhado todo ensaboado, esfregando o corpo com uma bucha. E, antes que este esboçasse qualquer reação, aplicou-lhe uma pancada com o caibro na prancha da cara que o fez rodopiar. Quando pensou em recobrar o tino da situação e pegar um pedaço de pau que ali estava, Tião levou mais uma na região produtora de bacuris. O urro que se ouviu transpôs as margens do valão e chegou até a casa onde morava, assustando sua mulher.
Daí em diante, ele não foi mais homem de reagir, e a sucessão de pancadas que recebeu em todas as partes do corpo deixou-o derreado no chão.
Então, Tonhão o arrastou pelas pernas, como a um fardo de carne-seca, lanhando suas costas nos gravetos e espinhos do chão, até a entrada de sua casa, onde amarrou o que restava do cunhado na paineira do quintal. Trançou-o todo ao tronco da árvore espinhenta com as correias e lhe disse nas ventas, aos berros:
- Isso é para você aprender a não tocar na minha irmã, seu canalha! Seu filho de uma égua!
Se Tião ouviu ou não, naquele momento, jamais se irá saber, porque, quando as pessoas tiveram notícia do fato e vieram socorrê-lo, sua alma já estava acertando as contas com o Tinhoso.
Montado num cavalo marchador, Tonhão caiu no oco do mundo, rompendo a Serra da Boa Esperança, varando pastos e matas, macegas e descampados, brejos e areais, de não ser reportado durante mais de quinze anos.
Até que, num dia de Natal, no décimo sexto ano no além do fato, aparece aquele senhor de cabelos grisalhos na casa de Dozinha. Anuncia-se como seu irmão Antônio, que viera pedir perdão pelo que ocorrera tantos anos antes.
Emocionada, a irmã abraça-se a ele e impede que seus filhos, sobre o tio, despejassem um intragável ressentimento curtido em salmoura por tanto tempo.

2 comentários:

  1. Pois é, quem bate em quem quer, apanha de quem não quer. Gostei do Tonhão.

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  2. Homem de bem, o Tonhão. Herói clássico, até na expiação. Castiga e impõe a si mesmo a pena.

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