18 de outubro de 2010

ANTES SÓ DO QUE MAL ACOMPANHADA

Acharam no bolso do cadáver atropelado na esquina bilhete de despedida para a mulher. Não que ele tivesse cometido suicídio. A morte fora uma fatalidade. É que ele já tinha dado o pinote, abandonado o barco matrimonial em meio a uma tempestade doméstica sem precedentes. Então, para não encarar os fatos de frente, para não ter de discutir a relação pela centésima vez nos últimos meses, preferiu uma saída desonrosa. Num momento de distração dela, saiu de mala e cuia, por assim dizer, e foi para um hotel de cavaleiros que fica no centro do Rio de Janeiro, pelos lados da Lapa. Iria mandar o bilhete pelo correio. Só que não houve tempo.

Parece, entretanto, que a moira não concordara com sua atitude e resolveu pregar-lhe uma peça. Antes mesmo que desfizesse as malas e arrumasse suas roupas no armário acanhado do hotel, saiu para comprar cigarro e foi atropelado pelo caminhão de lixo, que resolveu aproveitar a mudança de sinal e avançou na luz amarela. O resultado foi que metade da sua pessoa ficou sob a roda do caminhão. O fedor insuportável que exalava do caminhão, inclusive, espantava os curiosos, que ficaram de longe a observar a cena.

Depois de recolhido pelo rabecão e removido para o IML, teve esse mau passo revelado, porque a agora viúva fora chamada para reconhecer o corpo. Ela, que já estava preocupada com o sumiço do marido desde cedo, suspendeu o choro no necrotério, tão logo viu as mal traçadas linhas com a desculpa esfarrapada em que ele lhe jogava toda a culpa da separação sobre as costas. O traste não teve nem a decência de reconhecer que fracassara como marido, foi o que ela pensou, quando chegou ao fim da leitura. Miserento covarde! Ainda me dá o trabalho de me despencar do Cachambi para vir até o IML e olhar essa cara de tacho, com o estupor da morte estampado nos olhos, continuou pensando.

O médico responsável pela necropsia lera o bilhete e se desculpou pelo fato, dizendo que lamentava muito a situação ter chegado a esse ponto. Ela disse que não era nada, que o casamento já estava mesmo se esboroando, não era de hoje, só que ela não esperava que ele fosse sair sem dizer palavra viva, de própria boca, e usasse o jeito unilateral de dar por encerrada a convivência, sem que ela pusesse o ponto final, o arremate, como era de seu feitio – a última palavra sempre a dela. Agora ali, diante do defunto, tinha seu discurso inconcluso, impossibilitada de lhe dizer poucas e boas, de lhe jogar na cara todas as mágoas e reclamações. Tá bom também!, pensou em seguida. Fico com a pensão dele, recebo o seguro, pinto a casa de verde alface, e sento-me na varanda, para tomar licorzinho com as vizinhas, contando mentiras de minha vida com ele. Todas ficarão com inveja de mim, com dó do sucedido, dizendo que sou muito nova para viver sozinha, que precisarei novamente de um marido bom como ele. E eu vou rir por dentro, disfarçando tudo, sem querer nunca mais saber desse bicho esquisito que é homem, que gosta mais do time de futebol do que da gente, que reclama por pouco sal ou muito sal na comida e ainda tem o desplante de pedir que lhe peguemos uma cervejinha gelada, para não perder o lance do jogo. Faça-me o favor! Antes só, do que mal acompanhada.

2 comentários:

  1. Mestre, você anda perverso, não deu nem uma noite de liberdade ao pobre na Lapa. Pô, saganagem! Quanto a gostar mais de time de futebol que de mulher,depende, das que fquei mais de um ano junto, o Botafogo está sempre em primeiro lugar, agora, quando o troço é recente, elas até conseguem empatar. Ai..Ai...que d. Jane não leia isso...hihihi...

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  2. Nelson Rodriguiniano. A ironia poética com que nos brinda leva-me a crer que não fica nada para depois, tudo tem que ser resolvido aqui mesmo e azar dos atrasados e displicentes.

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