5 de janeiro de 2012

A QUEDA

Acordo, no meio da madrugada, com uns gritos confusos do sonho que me dominava. Desperto na quase escuridão do quarto. Paulatinamente vou recobrando o tino das coisas e me certifico de que tais gritos não são produto do meu sonho. São reais.
Aos poucos, descubro seu sentido, no fundo da noite tranquila. Uma mulher - parece que jovem - clama por socorro, sem desespero, mas de forma precisa e consciente.
Levanto-me e vou até a área de serviço do meu apartamento, que dá para um grande vão com o edifício ao lado, na intenção de localizar de onde parte aquela solicitação dolorosa.
Não há bulha que pudesse indicar sua origem.
Entre os gritos que ouvi no sonho e os que ouvi já acordado, imagino que mulher deve ter feito cerca de doze a quinze pedidos de socorro, de forma cadenciada, a intervalos de cerca de dez segundos a cada três emissões seguidas.
Liguei para o porteiro noturno, que informou já estar ciente e procurava também descobrir de onde vinha o pedido.
Até que a voz potente de um homem ecoou do lado oposto ao meu:
- Onde você está? O que aconteceu?
E a voz feminina, sem desespero e com uma lucidez incompreensível para aquelas três horas da manhã:
- 1201. Caí no banheiro e acho que quebrei a perna.
Por esta informação, concluo que não é no meu prédio, pois nossa coluna 01 está do lado oposto do edifício e dela não se pode ouvir nada aqui onde moro.
Daí a pouco, volta a voz masculina:
- Fique calma. Já liguei para os bombeiros. Eles já estão vindo.
Fez-se o silêncio costumeiro. Dez minutos após, se tanto, ouvem-se outras vozes masculinas, agora incompreensíveis. Destacando-se delas, a voz da mulher:
- Arrebentem a porta!
Ouve-se um tranco seco e ruído de madeira sendo esgarçada.
Cães começam a latir. Cria-se, então, um impasse entre os socorristas e a acidentada, durante alguns minutos. Em minha mente, que sempre pensa bobagens até nos momentos mais solenes, fiquei imaginando que eles teriam de pedir auxílio ao mexicano encantador de cães, Cesar Millan, ou sacrificarem os animais.
Algo dever ter sido feito.
Cessada a resistência dos animais, o silêncio voltou à madrugada. Mas, aí, meu sono já tinha sido rebocado na padiola que, certamente, conduziu a dona de perna quebrada para a emergência do hospital. E fiquei rodando na cama, quase em desespero de pedir por socorro, dentro da noite que, de veloz, não tinha nada.

Ferreira Gullar, Desenho (asclejr.blogspot.com).

3 comentários:

  1. O pior da muvuca é a gente não conseguir compor um quadro satisfatório do acontecido. As variantes da história ficam feito mosquitos rondando a cabeça, gerando fagulhas de pensamentos ou incêndios na memória difíceis de serem contidos.

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  2. Exatamente isso! Talvez a razão para que o sono vá-se embora.

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  3. Belo texto, é assim mesmo que ficamos, sem o sono e imaginando o que possa ter ocorrido.

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