14 de janeiro de 2012

JOÃO SEM VOTO

Quando o TRE divulgou o resultado final das eleições, foi como se João Lemgruber, o Alemão, tivesse levado um balde de água gelada pelas platibandas de sua pessoa avermelhada e presunçosa. Tivera tão somente dezesseis votos para a vaga de vereador, num pleito conturbado e cheio de acusações entre os candidatos, em que, para pretender uma cadeira à câmara, precisaria de quinhentos votos, em contas econômicas.
Tão logo teve conhecimento da sua inexpressiva votação, pegou a falar mal dos eleitores, para ele, agora, um bando de gente sem consciência política, muito mais interessada em ganhar agrados dos candidatos, do que em construir um futuro melhor para a comunidade. Deslembrado ficou de todas as pequenas promessas feitas a quem pedira voto.
E desandou em sua peroração por todos os lugares que comumente frequentava: o salão de barbeiro; o bar da sinuca; a roda de cafezinho do bar do Salim, na rua do homem em pé; o posto de gasolina no Bairro Novo; as filas de banco; em volta da carrocinha de angu à baiana do Pelega, nos confins da madrugada, deteriorando o paladar daquele saboroso prato fumegante, movido a pinga e pimenta, com suas observações ressentidas.
Nessas oportunidades, todos que o ouviam garantiam ter digitado seu número na urna eletrônica. Seria bom que ele verificasse isto muito bem, porque esse tal de computador, há alguns anos, tinha armado uma trairagem das grossas para cima do Brizola. Pusesse o Alemão isso na sua conta de desconfiança, como alertou Moreninho, ao lhe fazer a barba. E, justo no momento em que passava a navalha na altura da jugular, ainda lhe perguntou:
- Alemão, você duvida do meu voto? E, depois, Alemão, só de parentes seus há pra mais de cinquenta! Como é que você vai ter só dezesseis votos, cara?! Se fosse eu, pedia recontagem.
Com a navalha rondando espaço tão desacautelado de sua pessoa, Alemão concordou e encheu sua cabeça de nove horas e minhocuçus desconfiados.
No diretório do partido, aonde chegou cheirando a Aqua Velva, com muita má vontade do secretário, conseguiu que o ajudassem a requerer a tal recontagem.
Melhor não tivesse feito!
Imagem em routenews.com.br.

Quando saiu o resultado do recurso, trinta dias depois, viu que a votação diminuíra para apenas quinze votos. Foi como se Napoleão, seu ídolo, sofresse punhalada pelas costas de um de seus generais de confiança, em plena campanha da Rússia czarista.
Aí chamou a mulher às falas, no meio de chouriço com angu molinho pelo almoço e um mau humor a que nem chá de losna daria jeito. Pediu-lhe que convocasse a família – sobretudo a dela – no intuito de apurar as falsidades de costume. Durante a campanha, vinha a parentagem comer seus churrascos e suas feijoadas e arrotar que a eleição "já é nossa, Alemão", como falava aos brados o cunhado Militão, empanturrado de caipirinha e maminha de alcatra, coadjuvada por mandioca amarela no vapor.
Cunhado, quando tem alguma serventia, é para emprestar dinheiro a juro de poupança e oferecer cerveja gelada nas visitas contumazes que recebe. Militão nem para isto servia, pois era ele quem sempre vinha dar suas facadas no bolso do Alemão. Militão também iria ouvir poucas e boas, que ele, Alemão, não estava aí para encher barriga de gente folgada e traiçoeira.
Só não marcou uma cabritada, a que, com certeza, todos aqueles mortos de fome compareceriam, porque não havia motivos: estava era vendendo azeite. Mas procurou falar com um e outro parente, do mais chegado ao mais distante, e não houve um que, sob juramento de ver a mãe mortinha, mortinha, desgarantisse ter digitado o número do Alemão naquela televisãozinha miúda do TRE: o 666.
Jurandir, que vinha a ser seu contraparente, porque casado com a prima Lindaura, de um grau quase perdido na parentela e com quem ele, Alemão, tivera alguns entreveros amorosos às esconsas, levantou a hipótese de que o número não ajudava. Era o tal número da besta do “poscalipso”, como ele disse.
- Que “poscalipso”, que nada, Jurandir! Fui vítima é da trairagem de vocês! Na hora de comer da minha feijoada, de se fartar do meu churrasco, todo mundo estava lá, com a boca cheia de dentes, prometendo mundos e fundos. Até arroto espaventoso tive de aturar durante a campanha! Teve gente que até me pediu vaga de assessor, contando com o ovo no cu da perua. Agora você vem com esta história de “poscalipso”. Tenha dó, Jurandir! Foi trairagem das grossas! Militão é outro: veio com desculpa esfarrapada de que a vista turvou na hora agá e possa ser que o dedo tenha escorregado para outro número. Isso é desculpa, Jurandir?! Que possa ser, mané possa ser, Jurandir?! Vocês são é um bando de traíras! Parente é serpente, Jurandir! Quer saber? É isso que é: serpente! Pega no calcanhar da gente, quando estamos desprevenidos. O tal calcanhar de aquilo, como se diz. E tem outra, Jurandir, vou me mudar pra Barra de São Francisco, em terras do antigo Contestado do Espírito Santo, parede-meia com Minas Gerais. Dizem que lá é terra de gente braba, mas tudo de palavra. Se falar que é, é porque é! Se falar que não é, nem Santo Expedito muda a opinião deles! Vou é pra lá, Jurandir!
Jurandir não respondeu. E Alemão deu a volta sobre os calcanhares, tal qual recruta do tiro de guerra, em exercícios militares pesados, visando a possível guerra estrangeira.
Quinze dias depois, estava a mudança triste de Alemão e dona Carminha, sua mulher, no caminhão-baú do Candico, atravessando a ponte sobre o rio Itabapoana.
Era uma manhã comum de janeiro – o bico do maçarico solar já ligado – e o caminhão começou a subir a serra de São José do Calçado. Passou pela Volta Fria, mas não passou da curva de Palmital: o velho motor bateu biela, sem dó, nem piedade, e refugou continuar viagem.
Alemão teve de ir a pé até a sede do município requerer ajuda do amigo Tonico Lahud, que lhe enviou caminhão para rebocar a tralha toda de volta a casa, e decidiu enfrentar a situação como Napoleão no seu exílio da Ilha de Elba. Porém não saiu mais de casa, porque passou a ser conhecido por João Sem Voto. E não queria saber de intimidades com merda de rei inglês nenhum.
E humilhação maior na cidade só houve, quando seu time perdeu para o Ordem e Progresso Futebol Clube, da cidade vizinha, por placar que este narrador tem até vergonha de registrar aqui.

2 comentários:

  1. Bem, eu estou com a barriga doendo de rir e de fome ao lembrar do angu do Pelga e tenho certeza que o Tonico deve estar exatamente do mesmo jeito, com mais fome, ele era mais guloso. Valeu!

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  2. Também com aquele número, nem o Sarney se elegeria. Mas enfim, disse a que veio: tal qual a maioria dos políticos, trocou de povo.

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