8 de janeiro de 2012

A TIA E OS MORTOS DO NATAL

Sempre que chega a época de Natal, há constrangimentos gerais na casa de Lucinha. É que, junto com os preparativos para a festa em família, sempre em sua casa, onde mora, além do marido e do filho, a mãe viúva, há sempre de se fazer a lista dos demais convidados em que se incluirá a indesejada tia Alzira. À ceia, acorrem também o outro filho casado com sua família, a prima órfã e outros parentes. Este ano, especificamente, viria a noiva do caçula, acompanhada de seus pais e irmãos.

Alzira é irmã de sua mãe, Alcina, esta viúva. Alzira nunca se casou, porque ficou a escolher demais um bom homem, e como não há bons homens – sempre os há de remediados a péssimos –, ficou solteira. É aquela velha história: escolheu demais, não achou! Agora anda pela casa dos setenta e tantos e, não tendo muita coisa que fazer da vida, junta dinheiro para sua sobrinha órfã, única pessoa no mundo que talvez ela ame um pouquinho; vai com frequência ao consultório da fonoaudióloga para opor reparos ao último modelo de aparelho de surdez que comprou e toma conta da vida alheia.
Uma vez no consultório, aguardando a hora da consulta, toca a falar mal da vida das pessoas com quem esbarra nos corredores do condomínio onde mora, as quais sempre taxa de mal-educadas e pernósticas, detalhando fatos e peripécias que não interessam a nenhum dos outros deficientes auditivos com quem divide a sala de espera. Talvez a atendente seja a única pessoa que realmente ouça tudo o que ela diz, mas também não presta a mínima atenção. Já a conhece há muito.
Alzira sempre foi assim. E Lucinha sabe disto desde quando tomou consciência do mundo dos adultos, ainda em tenra idade. Agora ela mesma também já é avó. Mas todo esse tempo vivendo próximo à irmã de sua mãe não fez com que tivesse um mínimo de amor pela tia, em quem reconhecia a cupidez, a avareza e esta entojada mania de estar sempre futucando passados mortos e enterrados, bisbilhotando presentes suspeitos e vaticinando futuros complicados.

E todo Natal era a mesma coisa! Tia Alzira vinha para a ceia e trazia consigo um bando de personagens mortos: da família, dos vizinhos, dos antigos conterrâneos de Trajano de Morais. Tinha por hábito falar dos mortos na noite de Natal. Era do seu ritual, da sua liturgia natalina. Gente que já estava morta e enterrada de muitos anos, mas que sempre aflorava em suas conversas ao redor do peru, do bolo-rei e do bacalhau à Zé do Pipo que Alcina, cozinheira de mão cheia, fazia com todo o carinho para a família.
- Mãe, não estou com a mínima vontade de convidar tia Alzira para a ceia deste ano. Não aguento aquela conversa sobre gente morta. Fica um Natal triste, soturno. Até os meninos – e referia-se aos dois filhos – perdem a alegria. Sem ela, o Natal é melhor! Lembra do ano atrasado, quando ela estava internada por causa da cirurgia de apêndice? Foi o melhor Natal da minha vida!

Alcina, contudo, ponderava com a filha. Coitada da irmã! Solteirona até aquela data, mal-amada por todo o sempre, não convinha fazer isso. Era a cruz que elas tinham de levar. Aguentar as esquisitices de sua irmã. Pode ser seu último ano, acenava Alcina com esta possibilidade alvissareira para Lucinha.
- Mas, mãe, cruz a gente carrega na Semana Santa, na Quaresma, e não no Natal. Natal é tempo de alegria, de confraternização. E tia Alzira vem desenterrando até morto que não conheço.

E acabava, mais um Natal, Alcina convencendo a filha de que deviam suportar mais esta vez a irmã, em nome do amor que Cristo pregava e pelo qual deu sua vida.
Era a mesma conversa. E Lucinha cedia.

Na hora marcada, chega tia Alzira, rigorosa na observância de horários, com as mãos vazias como sempre – nem um presente para seu sobrinho-bisneto a completar seis meses, reparou Lucinha. Trazia um xale preto sobre os ombros, a compor, com o vestido também preto com bordados na gola canoa, um visual sisudo e grave. Parecia vestida para uma missa de sétimo dia e não para a noite da Missa do Galo.
Em comunidade0937.com.
Como de hábito, sentou-se na poltrona de flores roxas, após tomar nas mãos uma taça, onde o sobrinho serviu espumante. Cruzou as pernas magras e longas, ajeitou a ponta do xale que caía sobre o colo e disse, ao sorver o primeiro gole:
- Alcina, se lembra de seu Maniquito, vizinho de papai lá na chácara em Trajano, que morreu debaixo do trator que dirigia?

Lucinha quis chorar, quis gritar, quis protestar, porém resolveu também beber um gole generoso do espumante e foi para a cozinha pegar o peru no forno. Seria melhor tentar não prestar atenção ao que ela dissesse. Como se isto fosse possível!

Aquela noite de Natal estava apenas começando. E os mortos de tia Alzira mal começavam seu desfile fantasmagórico.
Pode ser que, no próximo ano, tia Alzira já tenha desencarnado, espichado as canelas, lá o que seja. Aí ela, Lucinha, falaria rapidamente da tia logo no início da festa. Mas com uma alegria só. E nunca mais tocaria em mortos na noite de Natal.

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