25 de janeiro de 2012

TIPO ASSIM (I): SEU JOÃO PITANGA

Morei em pensão, ao vir para Niterói em março de 1967.

Tinha completado os vinte anos e saí da minha Bom Jesus natal, para estudar e trabalhar aqui. Acompanhava meu amigo de Curso Científico, que àquela altura equivalia ao Segundo Grau, Antônio Carlos Lepre, do qual me perdi em todos os anos posteriores àquele, a não ser por uma única e fortuita vez em que nos encontramos em Icaraí.
Lepre vinha apenas estudar, porque sua família tinha mais posses e poderia mantê-lo aqui. Veio para fazer Engenharia. Aqui já estivera para encontrar lugar onde ficar e foi na pensão de dona Dinorah que reservara sua vaga.

Fiz minha bagagem, comprei passagem junto com ele e desembarcamos numa manhã de domingo, cheia de bons presságios, na rodoviária da cidade. Pegamos o antigo ônibus da linha Viradouro-Centro e, depois de acertar o sentido do trajeto, chegamos a Icaraí. Cheguei na cara de pau, como se diz comumente, mas dona Dinorah dispunha de vagas.

A pensão ficava na Rua Pereira da Silva, na primeira quadra da praia, em casa geminada de dois andares que já há muito desapareceu da paisagem urbana, dando lugar a um edifício.

Como já havia morado no internato do Colégio Bittencourt, em Campos dos Goytacazes (Eh, grafiazinha mais esquisita!), não me foi difícil dividir o espaço com desconhecidos.

Os rapazes moravam na parte superior da casa, enquanto as moças, dona Dinorah e uma filha casada, o genro e suas duas netas habitavam a parte térrea.

Entre os rapazes, nem todos estudantes, estavam também um senhor de certa idade, seu João Pitanga, com seu quartinho separado, e o italiano Pietro, sócio do extinto Supermercado São Francisco, também num quarto só seu e bem maior.

Num quarto coletivo grande, além dos estudantes, dormiam o italiano Ciro Firpo (já referido por mim em outra postagem*) e o paraibano Roberval, que teimávamos em chamar de Baiano, para seu desespero:

- Eu me chamo Roberval e sou paraibano! – respondia sempre de mau humor.

Seu João, que, se não me engano, era aposentado do extinto Instituto Brasileiro do Café, efetivamente morava na pensão, após o término de seu segundo casamento – diziam à boca pequena, por traição da mulher mais nova. Era um homem culto, refinado, com as manias inerentes aos mais velhos, e que recebia esporadicamente a visita de um filho sempre que este tinha necessidades financeiras, motivo por que os rapazes, que tinham em seu João uma figura paterna, cultivavam uma solene antipatia por ele.

Com frequência conversávamos sobre Literatura – ele mesmo cometia seus sonetos e dava pitacos sobre a métrica quebrada de alguns versos meus – e cultura em geral. Dos poetas, gostava sobretudo dos parnasianos, Olavo Bilac à frente, pelo rigor formal e o cuidado na escolha das palavras. Lia seus jornais diários e alguns livros, que sempre oferecia para os que quisessem.

Estava sempre bem vestido, bem barbeado e suavemente perfumado. Fumava cigarro com piteira – as unhas aparadas e lustradas em manicura – e lembrava, pelo porte, de longe, um lorde inglês em processo de decadência financeira (afinal, morava num quartinho de pensão!).

Tinha ele um irmão médico, doutor Osíris Pitanga, que sempre aparecia  por  lá,  para vê-lo, trocar uma prosa em que, às vezes, nos incluíamos, e durante as férias escolares fazia as refeições na pensão, na companhia do irmão, porque sua mulher e filha iam aproveitar as delícias de uma casa que tinha em Guarapari, no Espírito Santo, famosa por suas areias monazíticas.

Como a vida sempre cuida de aprontar das suas, certa vez, ao voltar de umas férias mais longas em Bom Jesus, fomos surpreendidos pela notícia da morte de seu João: o coração lhe pregara a fatal e derradeira peça, e, desta vez, de péssimo gosto, pior que todas as anteriores.

Paul Cézanne, O fumante, 1890
(em atractif.com).

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(* No texto Desse susto não se morre, em http://wp.me/p1oCVU-x )

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