28 de janeiro de 2012

A MISSA DE CURA

Encomendou missa de cura para seu pai de oitenta e tais, que andava atrás de periguetes na rua.

O velho havia ficado viúvo e, tresnoitado de sempre, saía depois do jornal televisivo da noite para tentar possibilidades, por dinheiro miúdo, com meninas que faziam ponto na pracinha semiescura, semiclara, perto da rodoviária.

Sempre havia algum motorista de táxi conhecido, cujo ponto era próximo dali, disposto a ligar para a casa da filha. Cidade pequena tem desses problemas: todo mundo se conhece e se julga no direito de se intrometer na vida alheia.

- Olha, seu Honorino já chegou aqui. Hoje botou um boné creme.

Pela cor do boné, ela sabia que a informação não era um trote. O velho tinha uma coleção deles, muitos dos quais ela mesma trouxera de viagens que fazia, pelo menos, uma vez por ano Brasil afora e mais alguns países por aí.

Aquele de cor creme – lembrava-se bem – era um que lhe trouxera de Madrid, quando lá estivera há cerca de quatro anos.

Seu Honorino foi um homem religioso até a missa de mês da finada esposa. Depois disso, desembestou na vida. Só queria saber de saliências. Passou a comprar a pílula azul, inclusive no mercado paralelo, via Paraguai, de um muambeiro que lhe fiava, quando necessário. Montado nesse afrodisíaco, julgava-se ainda jovem, capaz das maiores prosopopeias, que gostava de comunicar aos frequentadores do bar do Barrosinho, entre um cafezinho e outro.

- Olha, seu Honorino hoje está com o boné quadriculado.
Era o que ela trouxera de Glasgow, no início deste ano.

Sempre saía com o marido, para rebocar o pai para casa. O genro ia contrafeito:

- Deixe seu pai se divertir, mulher! É o único prazer que lhe resta na vida.

Porém ela estava sempre preocupada com a saúde do pai, não só a física, mas também a financeira. Embora tivesse uma boa aposentadoria – fora o que, antigamente, chamávamos fiscal de rendas –, o dinheiro é um bicho arisco, capaz de escapar por entre as frestas mais estreitas, os dedos mais apertados. Se a mão for aberta como a de seu Honorino, então se faz uma cachoeira incontrolável. E, algumas vezes, tivera de socorrê-lo para pagar a conta da farmácia. Por isso, a sua preocupação.

Aí, encomendou ao padre Herculano, pároco da igreja que frequentava, também próxima à pracinha, a tal missa de cura, a fim de cicatrizar as saliências em forma de ferida na alma e no corpo do pai.

Era uma sexta-feira, às dezoito horas, quando o padre Herculano começou por aspergir água benta sobre a cabeça dos fiéis, em preparação para o ritual da cura.

Seu Honorino, ao lado da filha, na parte interna do corredor central da igreja, levou, praticamente, um banho de água benta. Padre Herculano sabia que a limpeza ali tinha de ser em regra.

Na hora, ninguém percebeu, mas subiu da calva de seu Honorino um leve vapor da água, como a denunciar a fervura de safadezas que iam no interior da cachola do velho.

Ele aproveitou o banho tomado e espalhou nos frontispícios da sua pessoa o Pelo Sinal, com cruzinhas aqui e ali mal colocadas, mas que, enfim, Deus iria lá entender a sua boa vontade em estar ali, para agradar a filha.

Por ele mesmo, não queria. Já havia muito frequentado igreja, rezado ladainhas, acompanhado procissão, ralado joelho em vias sacras, levado a netinha para as coroações do mês de maio, quando a finada era viva. Julgava ter um crédito avantajado no livro de São Pedro e começara a gastá-lo em vida, a fim de que, quando abotoasse o paletó, não passasse como um foguete pela porta do céu e o santo tivesse o trabalho de lançar âncora, para segurar sua alma no paraíso.

E, nessas ponderações mentais, levou toda a missa, sem prestar a mínima atenção ao sermão do padre Herculano, que ameaçava com as penas eternas nas caldeiras e fogueiras do inferno as pessoas caídas na tentação da carne, nos pecados da concupiscência e da bandalheira, como chegou a bradar, a veia do pescoço dilatada, o carão vermelho entumescido.

Ao final da missa, a filha foi até ao pároco agradecer o vigor das palavras e manifestar a esperança de que seu pai, enfim, voltasse a ser o velho ajuizado que fora até alguns meses atrás. Beijou a mão do padre e se foi com o pai, de braço dado.

Instado pela filha, seu Honorino disse que gostara muito do que ouvira – de fato, não prestara atenção em nada – e ainda gavou os dons oratórios do vigário, “um homem de Deus, apetrechado com o dom da palavra”, segundo afirmou.

No domingo à noite, logo depois do Fantástico, toca o telefone na casa da filha:

- Dona Fátima, seu Honorino acabou de chegar na pracinha. Agora está com aquele boné marrom de veludo.

Era o boné que lhe trouxera de Gramado, no ano anterior...

Imagem em mastiz.net.

2 comentários:

  1. Seu Honorino agora é meu ídolo, é o "nosso" Honorino. Rachando de rir, lembrou meu avô lá em Calçado...Ha! Ha! Ha! Ha! Ha!

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  2. Quando é que seo Honorino vai aprender a largar o boné em casa? Afinal o céu não lhe há de cair na cabeça.

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