Havia na minha vila natal, até princípios da década
de sessenta do século passado, três cocheiras. E, na minha ingênua visão de
menino, isto me parecia sinal muito forte de pujança econômica.
A vila tinha lá seu movimento aumentado aos sábados,
quando vários moradores das roças nos arredores para ela se dirigiam, no
intuito de reforçar as provisões da semana entrante, quando também aproveitavam
para encontrar os amigos, tomar umas calibrinas, jogar carteado,
cisprandi e sinuca e desfrutar, enfim, um pouquinho daquilo que a vida
simples do interior podia proporcionar àquela altura.
E vinham quase todos em seus animais de sela –
cavalos, éguas, burros e mulas – que eram deixados aos cuidados dos
cocheiros. É bem verdade que alguns cavaleiros de menores posses deixavam seus
animais amarrados em algum lugar das ruas.
Quem vinha do lado da Vala e do Jacó encontrava a
cocheira do Juca Teixeira, na Coreia, uma espécie de bairro da vila que ficava
após o morro do cemitério. Juca Teixeira, na ocasião o mais velho deles, era um
homem alegre, brincalhão, mas que me passava uma seriedade danada em seu
trabalho.
Os cavaleiros que demandavam a vila vindo dos
lados da Fazenda da Liberdade tinham, logo no sopé do morro do grupo escolar,
em frente a uma singela serraria localizada sob frondoso pau-d’alho, a cocheira
do Jair Passarelo. Jair era um tipo divertido, que vivia às gargalhadas, falava
alto e gostava de contar causos.
Já os que chegavam dos lados da propriedade do João
Monteiro ou da fazenda do doutor César Ferola, no além do valão Liberdade, encontravam mais à mão a cocheira do Memeco, vizinha
da oficina de ferreiro de Jeremias. Memeco era pai de colegas meus de sala de
aula, Ademir e Alcenir, e dele tinha as informações de ser um homem rude, mal-humorado,
de poucas falas, e violento com os filhos, que constantemente reclamavam comigo
das surras que levavam.
Todas as cocheiras se equivaliam em tamanho. Talvez
a do Juca Teixeira fosse um pouco menor, coisa mínima. Mas todos os cocheiros
tinham seus bigodões fartos a fazer comichão no nariz. Na época, no entanto,
este era um apetrecho bem comum em riba da boca dos homens.
Ferrando cavalo, foto de Geraldo Adami (olhares.uol.com.br). |
Em qualquer delas, que funcionava como
hoje funcionam as garagens para os automóveis, os animais eram deixados para
comer e descansar da viagem; e, aliviados de seus arreios, passavam por um
tratamento carinhoso daqueles profissionais. Fosse verão, eram lavados e,
depois de secos, escovados. Mais de uma vez, admirando o trabalho de um e
outro, tinha quase a certeza de que os animais gostavam muito de quando os
cocheiros passavam em seus pelos uma escova feita de lata e cheia de dentes
miúdos, que a mim, porém, parecia instrumento de tortura. No entanto,
lembro-me ainda, meu tio Aurélio Azevedo, que sempre deixava sua mula aos
cuidados de um ou de outro, certa vez me garantiu que aquilo só fazia
cosquinhas no lombo do animal.
Além disso, eles revisavam as
ferraduras e, caso o animal apresentasse algum problema, providenciavam sua
solução, como aparar e curar o casco, repor ferraduras, ou tratar de alguma
ferida produzida pelo arreio, ou ainda simplesmente tosar a crina, como se
fosse num salão de barbeiro.
Pelo menos Juca Teixeira tinha
habilidades na confecção de selas e arreios, produzidos artesanalmente, e
passou a seu filho Nilo a aptidão que este transformou em arte. Os arreios do
Nilo são peças de fino lavor e muito bom gosto, que devem ser encomendados com
antecedência, tal a quantidade de pedidos. À época, Nilo era um menino um pouco
mais velho do que eu.
Uma coisa que sempre chamou minha
atenção foi a limpeza do chão das cocheiras. Era difícil ver excrementos
amontoados. Tão logo o bicho acabasse de defecar, o cocheiro providenciava a
limpeza do chão, de modo que o ambiente sempre estava asseado, apenas com o
cheiro característico que esses animais têm e que, de modo algum, repugna.
Embora eu mesmo nunca tenha tido habilidades
de cavaleiro, pois jamais aprendi a dominar o animal como fazem alguns – meu
tio Alcebíades Souza, por exemplo, hoje com seus noventa e sete anos, é
detentor de vários troféus de montaria –, sempre admirei esses animais* que
estão entre os mais importantes no desenvolvimento da civilização humana. Foi
com a sua doma que o homem, na mais remota história, passou da condição de
sedentário à de conquistador de novos espaços. Estão aí o macedônio Alexandre,
o Grande, o romano Júlio César, o visigodo Alarico, o huno Átila, o curdo muçulmano
Saladino e o mongol Gêngis Khan, que não me deixam mentir.
Ainda menino, senti que as coisas
estavam começando a mudar, quando tio Aurélio, homem alto e corpulento, comprou
um fusquinha para deslocar-se do Jacó à Rua, como chamávamos a vila, e as ondas
do rádio começaram a encher o pacato ar de Liberdade com os acordes
furiosos do rock‘n’roll. Ambos sobravam naqueles espaços acanhados: meu tio e o
rock.
Os cavalos e os cavaleiros estavam com
seus dias de glória ameaçados. Hoje quase só se anda a cavalo por ostentação.
Os velhos pangarés de lida perderam o prestígio.
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(*Se quiserem, leiam o poema Velhos cavalos, que postei em Gritos & Bochichos, em http://wp.me/p1oCVU-2K )
Olá, sua nova seguidora a te visitar*)
ResponderExcluiradoro esses causos e cavalos também são uma paixão...já montei, mas tive medo, admiro quem sabe domá-los.São bonitos!
Abraços alvinegros, já o vi lá no Zantônio.
Moro no Rio de Janeiro, pertinho.
Mery*
Olá, Mery! Somos vizinhos e sofredores!
ResponderExcluirMeu irmão Guth Mello mandou via e-mail:
ResponderExcluirSaint-Clair,
aida não aprendi postar comentários no blog (é o próximo passo) mas, sem comentar, me posto maravilhado ante "as cocheiras...".
Bjs, Guth.
Bravo Saint-Clair Mello. Retrata a Realidade de Uma Importante Atividade de nossas Vilas. Saudações
ResponderExcluirObrigado! Mas você apareceu aqui como "desconhecido".
ResponderExcluirDefendi a sua autoria no poema postado com o título "BOM DIA GRUPO! SÓ PARA REFLETIR!" assinado por MINHOCA. RAPAZ! Estão cuspindo marimbondos em cima de mim, apesar de já ter pedido desculpas, se peguei pesado. Mas o efeito, negativo ou positivo, de minha parte, ativou o grupo e os comentários estão subindo, como um termômetro com uma vela acesa na bolha de mercúrio. Acho que vai explodir!......
ResponderExcluirQuanto ao texto:"AS COCHEIRAS DA MINHA VIDA" é um retrato perfeito, contado com palavras bem colocadas, e nos levam a refletir nos bons tempos de nossa infância e juventude. Muito bom! Gosto muito de ler suas crônicas, poemas e contos. Parabéns!
Vi lá alguns comentários. As pessoas, às vezes, se melindram com facilidade. Não era para ter chegado nisso. De qualquer forma, obrigado.
ExcluirMuito legal, adoro causos antigos e tenho admiração por Carabuçu, moro em Bom Jesus há 42 anos e me considero Bonjesuense, logo Carabucu me pertence.
ResponderExcluirObrigado
Com este tempo de casa, com certeza você é bonjesuense. Obrigado pela leitura e pelo comentário!
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