18 de setembro de 2011

BOTINA NOVA

Só não fora escravo porque a abolição já se havia espalhado pelo país, quando ele nasceu. No mais, no entanto, bem que parecia um velho escravo: os cabelos brancos, a paga miserável pelo trabalho, o desconforto eterno para sua vida miúda. Mais que um empregado, um fiel cão de companhia para a patroa, viúva fazendeira de muitas posses. Para ele, o progresso não significava quase nada, além da roupa do corpo e de uma ou outra viagem no auto – como chamava o ônibus – para a cidade. Vez em quando, ouvia um radiozinho caipira na sede da fazenda, que disparava no ar Alvarenga e Ranchinho, Jararaca e Ratinho e a sanfona bonita de Pedro Raimundo.
Já quase no fim da vida, e nunca tinha posto um sapato no pé. Uma precata que fosse! A patroa, muito reconhecida por todos os bons serviços que lhe prestara, resolveu presenteá-lo com uma botina ringideira, para que ele pudesse ir ao parque de cavalinhos armado bem defronte da capela do Córrego Seco.
Botou a botina lustrosa nos pés e saiu pisando duro, meio desajeitado, como se estivesse numa gangorra. Os amigos, ao vê-lo, mexiam com ele:
- Aí, seu João! Nem passou pelas precatas, hem! Foi logo de botina ringideira!


Imagem em vejapatos.com.br.

E ele, todo bobo, todo folgazão, com aquela coisa rebrilhando embaixo de seu corpo já um tanto alquebrado.
Andou que andou e já sentiu certo desconforto, certo aperto nos pés. Encostou-se à barraca de jogo de argolas, para descansar um pouco, e aproveitou também para tentar a sorte num maço de cigarros, numa garrafa de pinga. Daí a instantes, um suor frio, os pés doendo muito, os olhos se anuviando. Acabou estatelado no chão, completamente fora de si.
O socorro foi rápido. Trouxeram água fresca, abano, desataram-lhe a fivela do cinto, desabotoaram a camisa riscada de manga comprida fechada até o pescoço e, por fim, tiraram a ringideira dos pés. Só isso e melhorou, voltou a si, cobrou fôlego.
- O que houve, o que não houve, seu João?
- Os pé, os pé! Doeno munto!
Examinando o par de botinas, descobriram um punhado de pregos pontiagudos, sem rebatimento, nas palmilhas.
- Mas, seu João, seu João! Suas botinas tão que é prego puro! Por que o senhor calçou desse jeito, sem rebater os pregos?!
E o velho, inocente dessas maldades de precatas, sapatos, botinas, pregos e calos:
- Uai, gente! Eu pensei que era pra dá mais firmeza nos pé!

3 comentários:

  1. Desconsertante esta história, Saint-Clair. Quase que a aceito como piada. Mas aí me dei conta da inocência quase divina do seo João. É assim: na inocência do mal, sem malícia, nos deixamos machucar.

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  2. Paulo, esta é uma história que corria em minha terra lá pelos anos sessenta, como realmente acontecida. Apenas a recontei com minhas palavras.

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  3. Um história comovente, para quem já viu, como nós, pessoas como o seu João.

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