29 de dezembro de 2010

PROMESSAS DE ANO NOVO


(Imagem obtida em copacabana.com)

Era tido e havido como um esbanjador. Mazinho, como era chamado por todos, gastava mais do que podia. E podia sempre mais. Aí vivia encalacrado em dívidas, tendo de trabalhar dobrado, fazer serão, biscate, apostar no bicho, tomar empréstimo com parentes, para poder levar os trinta dias até o fim do mês. Caso contrário, terminava na quinzena, o mais tardar no dia vinte, apenas tomando café com leite e pão com manteiga, no pendura da padaria de seu Romário, uma espécie de contraparente, com quem contava na hora do aperto.
Na verdade, nem ganhava bem, mas tinha nascido com o espírito de rico. Quem é o culpado? Eu, você? Ninguém! Muito menos ele. Apenas dava vazão ao seu instinto de perdulário, incapaz de ser contido por qualquer conselho, por qualquer dificuldade. Tinha sempre a confiança de que, um dia, por um milagre qualquer, ajudado talvez pela providência divina, que não falta ao devoto, acertaria na sorte grande de qualquer loteria, ou encontraria uma mulher mal amada e bem nascida, a quem pudesse consolar nas noites de frio, e, como consequência, arrumar sua vida.
E ia sonhando assim, sem procurar precaver-se para o futuro, alguma coisa incerta em sua vida. Um dia tudo se ajeitaria. Era o que esperava.
Numa passagem de ano – fecho de uma década e abertura de outra – cheia de bons presságios, um novo signo, ou um dos bichos esquisitos do imaginário chinês, a gerir a vida de todo o planeta, tratou de encomendar despacho bem urdido, em terreiro com letreiro de neon na entrada. Para não dar chance ao azar, também procurou todas as simpatias, rezou todas as rezas, comeu as uvas necessárias, deu os tais pulinhos em não sei quantas ondas, jogou flores para a rainha do mar e soltou o barco enfeitado, que adentrou a escuridão das águas na passagem da meia-noite. Em seguida, cruzou e descruzou os dedos, benzeu-se e beijou a primeira mulher feia que encontrou, com tanta paixão, que a pobre coitada desfaleceu, achando que seu príncipe encantado acabara de chegar. Cumpriu, assim, a última fase do ritual que um vidente lhe receitara, para ajeitar as finanças e poder usar as roupas bonitas que sempre desejara, entupir-se de perfumes caros e frequentar manicuras e pedicuras nas tardes de quinta-feira, sem compromissos a tratar.
Assim que se pôs a voltar em direção ao calçadão da praia, o barco já sumido no breu da noite, sentiu alguém puxar-lhe a camisa branca devocional. Era a mulher feia, que já havia recobrado o tino das coisas e entendeu que suas preces também tinham acabado de ser atendidas. Podia estar ali o homem da sua vida.
Apresentou-se, mas ele não a reconheceu, pois a beijara sem escolher, no impulso de cumprir o ritual recomendado. Foi a primeira que encontrou ao dar as costas para o mar. Ela insistiu e ele caiu em si. A mulher, do jeito que estava, merecia uma reforma geral de um competente cirurgião plástico e não o amor devotado de um homem pretensioso como ele. Mas, quando ela declinou seu nome, com sobrenome de coluna social e negócios de atacadista de secos e molhados na praça de Niterói, Mazinho viu que, talvez com algum sacrifício, pudesse sair da situação de arrocho em que vivera até então e estabelecer-se na função de marido sortudo. Já que não nascera rico, pelo menos poderia casar-se com mulher rica.
Contou a ela, então, o motivo do seu gesto, e ela viu naquilo a predestinação dos astros que se conjugavam nos desvãos do universo, a fim de unir suas vidas. Ele achou-lhe o discurso um pouco precipitado, mas ponderou, de si para consigo, no escondido do cérebro, não ser hora de chutar para escanteio uma bola que lhe era lançada na pequena área, com o gol vazio, goleiro já nocauteado. Não lhe custaria mais esse sacrifício, depois de tantos por que passara. E, sordidamente, pensou em todas as possibilidades que um homem enricado da noite para o dia teria com as mulheres desamparadas que circulavam pela cidade e adjacências. E vislumbrou suas inconsequências devastando Niterói, São Gonçalo, Itaboraí e Região dos Lagos.
Mas não contava ele que as mulheres, feias ou belas, têm as suas artimanhas, quando intencionam enredar em suas teias de Ariadne o mais esperto dos mortais.  Foi, depois de visitá-la pela primeira vez, atendendo a um convite promissor, que já acordou, no dia seguinte, de juízo virado, de interesse verdadeiro por aquela mulher já nem tão feia quanto lhe parecera na noite de réveillon. Tinha tomado o tal café coado na calcinha usada na noite do beijo, como também recomendara a ela espírita vidente de panfleto distribuído nas esquinas do centro da cidade e consultório montado em galeria comercial.
E aí se deu a sua desgraça. Passou a ser um cordeirinho servil, na rédea curta, tocado com vara de marmelo, a fazer tudo o que a rainha mandasse, a paixão tão avassaladora, que chegou a pensar em inscrevê-la no concurso da mais bela mulher casada do clube IPC, de saudosa memória. E, se não fosse o conselho dissuasório da cunhada sensata, tinha passado por esse vexame diante da comissão de inscrição do concurso.
O borogodó de Carminha, esse é o nome dela, era de abalar seminário menor e desvirtuar padres e coroinhas. E Mazinho não teve o discernimento suficiente para compreender a enrascada em que se metera. As mulheres desamparadas de Niterói e adjacências continuam até hoje aguardando pelo fogoso cavaleiro que virá preencher suas noites de concupiscência, conforme também indicavam a elas as cartas da espírita vidente com consultório montado em galeria comercial.

2 comentários:

  1. Mestre, o texto é excelente, como sempre, agora desvirtuar padres e coroinhas? Mais!

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  2. E o gênio das mil e uma noite continua a fazer suas vítimas. O desejo, ah o desejo... tem uns que é de fechar o comércio!

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