26 de dezembro de 2010

O TOM CERTO DO BATOM

Em errodito.blogspot.com
Quando Vanilce, fingidamente despretensiosa, resolveu retocar o batom em seus lábios no grande espelho da loja em que trabalhava no shopping, não imaginou que fosse provocar o agravamento da hipertensão das malbaratadas artérias de Figueiredo, proprietário da óptica Clin d’Oeil do outro lado do corredor. Aquilo não era propriamente uma boca: era a cratera de um vulcão em plena atividade, a despejar magma incandescente de suas entranhas.

Foi só, mais outra vez, nos últimos meses, observar a morena sacudida, de cabelos anelados, lábios de Angelina Jolie, jeito de Juliana Paes, para começar a sentir uma pinicação na parte interna do braço direito, acompanhada de uma dor lancinante na parte externa, e um bolo, em movimento de sobe e desce, pelo esôfago calcinado por um azedume infernal. Achou que iria sucumbir naquele mesmo instante. Mas antes que desfalecesse, amparado pelo empregado balconista, teve tempo de pensar: Ou eu morro, ou eu caso com essa diaba! Esse desespero há de ter um fim!

Angelina Jolie, em allmoda.com.
Acomodado na primeira cadeira que o empregado conseguiu, refazendo-se do escurecimento das vistas, como diz o povo, com um copo d’água gelado, pediu que lhe comprassem um café expresso bem forte e ligassem para seu médico imediatamente.

Mais uma vez foi atendido pelo esculápio, que reforçou todas as recomendações anteriores, renovou o estoque de remédios e sugeriu que ele deixasse de frouxidão e fosse falar com a dita morena Vanilce, de tão boas referências, ou sua caldeira cardíaca explodiria.

Protegido por um “dinitrato de isossorbida, quimicamente designado de 2,5-dinitrato de 1,4:3,6-dianidro-D-glucitol”*, que atende singelamente por Isordil, na tarde seguinte, Figueiredo convidou Vanilce para um lanche na praça de alimentação do shopping. Tinha um assunto sério a confabular com ela, que requeria urgência e solução definitiva, a fim de que pudesse sanar certas idiossincrasias de sua presença no mundo.
Juliana Paes, em adrianeboneck.com.br.

A morena estranhou o palavreado, mas como o conhecia desde que começara a trabalhar na loja de cosméticos Hot Lips, combinou que, na hora do lanche, faria um sinal para ele e os dois poderiam esclarecer tudo aquilo e outras possíveis pendências.

Mas posso afiançar-lhes, sem conhecer ainda o fim desta história, que a morena bem sabia de tudo o que acontecia, porque cada ação sua era de uma deliberação milimétrica e, sobretudo, maquinada por cérebro predisposto à razia, ao saque e à devastação. Não há aquela música: “Quem sabe de mim sou eu e aquele abraço”? Pois é, era mais ou menos por aí.

Figueiredo era uma agitação só, pelo que foi aconselhado pela moça do caixa e se proteger com mais uma dose do milagrento, a fim de não dar baixa do rol dos vivos, antes do encontro com a moça de frente.

Lá pelas quatro da tarde, um pouco antes de lhe dar o sinal, Vanilce foi, novamente, retocar os lábios criminosos, tendo Figueiredo preferido desviar os olhos de dono de óptica e não olhar a cena, senão seria capaz de virar defunto fresco.

Sentados a uma mesa, no canto do café, ele escandiu nos ouvidos da morena todo seu desejo, toda sua sofreguidão, todas as suas pretensões para com ela. Garantiu-lhe, inclusive, que isso vinha ocorrendo desde o primeiro dia em que a vira na loja em frente à sua. Daí em diante, sua vida sofrera o que os franceses chamam de bouleversement, coisa assim de virar de cabeça para baixo até a mais bem instalada pessoa na face da Terra. Prometeu-lhe, ainda, casa montada, apetrechos domésticos de última geração e sociedade no comércio de lentes e armações, tirante papel passado em cartório diante de juiz de paz, testemunhas e convidados, com direito a taças de champanha e fatias de bolo decorado e lua de mel boiando pela costa brasileira.

A morena assustou-se! Percebeu que seu poder de encantamento estava hipertrofiado. Virara um monstro sem governança. E não pretendia tanto. Queria apenas fazer figuração, caras e bocas, para quem quisesse olhar. E sabia que ele era um de seus admiradores. Tentou ainda ponderar com ele que não havia chegado a hora de tomar uma decisão tão séria, nem mesmo pensava em se casar, sua vida ainda no comecinho, praticamente havia saído da adolescência. Muitos sonhos a realizar. E, de mais a mais, estava mesmo era à procura de um tom apropriado para os batons que experimentava na loja, porque, aí sim, no dia em que o encontrasse, sairia em desfile triunfal pelos corredores do shopping a ouvir os corações dos incautos rolarem atrás de si atropeladamente. No entanto, agora, só queria isso: o tom certo e o brilho adequado para aqueles lábios de Angelina Jolie. E, em sendo apenas aquilo, deu, então, por encerradas todas as prováveis pendências com ele e sugeriu a Figueiredo levar suas idiossincrasias a uma pet-shop no final do corredor, para banho, secagem e tosa.

(*Obrigado, Wikipédia!)

2 comentários:

  1. Ai...ai...estou com uma pinicação infernal, do dedinho do pé, ao último fio de cabelo. Por que será?

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  2. Menina sensata a Valnice, na contramão do trafego.

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