17 de dezembro de 2010

O DIA EM ZÉ CÂNDIDO CHEGOU AO CÉU

José Cândido de Carvalho
Quando Zé Cândido embarcou na nuvem das dezessete e pouco de uma tarde sorumbática do primeiro dia do mês de agosto do fatídico ano de 1989, apeado do corpo físico com que transitava pelo mundo, não cogitou que fosse encontrar na outra margem do rio Aqueronte a figura familiar e fanfarrona do Coronel Ponciano de Azeredo Furtado, seu invento no livro O coronel e o lobisomem.

Trajado nos trajes costumeiros, chapelão enfiado na cabeça, as botas respingadas de barro – tinha havido uma tempestade naqueles páramos –, baforando um charutão que lhe deixava o barbadão vermelho todo perfumado, o fantasminha de Vermelhinho aboletado no ombro, com a crista em modelo de bandeira ventada, o Coronel foi efusivo com o eflúvio do escritor. Sem maiores continências, gritou seu nome, naquele molde normal de falar, no meio do magote de visagens que desciam da barca de Caronte, sem tempo para que Zé Cândido pegasse o troco da viagem, pelo que o barqueiro ficou deverasmente satisfeito.
- Zé Cândido! Zé Cândido! Aqui, na ponta da pedra. É seu velho conhecido, o Ponciano de muitas luas e reinações! Vim fazer as honras! Vim dar as boas-vindas!
Zé Cândido ficou embaralhado das ideias. Jamais poderia imaginar encontrar ali o aluado Coronel. Pensou ser recebido por Rabelais, Cervantes, mesmo Érico Veríssimo, seu compatriota e admirador, ou pelo bruxo do Cosme Velho, o casmurro Machado de Assis. Nunca pelo Coronel Ponciano. Por suas contas, ele ainda estaria assombrando os pastos de Campos dos Goytacazes, de Santo Amaro a Mussurepe, de Travessão a Morangaba, chegando às escumas do mar para os lados de Atafona, já em terras de São João da Barra: assombração eterna a encantar moças desavisadas, nos comecinhos das noites mornas de lua cheia da Baixada Campista.
Capa de O coronel e
o lobisomem, com
desenho de Appe.
Ed. J. Olympio.
O Coronel abraçou-o fortemente, quase avariando o pouco de costela que restara de sua pessoa física, ainda quentinha no espírito. E, do alto do seu porte de palmeira, continuou a discursama receptiva:
- Veio muito depressa, Zé Cândido! Não esperava sua pessoa em antes de mais de trinta anos. Tem muita gente que deveria embarcar e ficou remancheando à beira do rio, sem querer atravessar. Tive ciência até de que deixou serviço por fazer, sem dar os devidos finalmentes.
- Para você ver, Coronel. Nem tudo o que planejamos conseguimos executar.
- Se tivesse requerido minha serventia, bem que poderia dar um ajutório, assoprar umas ideias na cova do ouvido, para que você completasse a obra com mais ligeireza, amigo velho. Mas se fez de rogado, cheio de sobrançarias, aí deu no que deu: embarcou em hora imprópria. Foi uma pena, mas o que fazer?
- Mas não dizem que os planos da natureza são inescrutáveis, Coronel?
- É o que alardeiam por aí, é o que trombeteiam, Zé Cândido! Me chegou, inclusive, notícia de que você resolveu gastar tinta sobre um tal rei Baltazar, o visitador do menino Jesus na noite de Natal, não é mesmo?
- É verdade!
- Pois é. O zum-zum-zum que sobreveio aqui deste lado é de que ia ser um livro por demais importante, muito portentoso, de um rei muito famoso, cheio de nós pelas costas. Coisa nunca vista pratrasmente na literatura brasileira. De encher as burras do povinho das rotativas e das bancas de livros.
- Nem tanto, Coronel! Mas era uma história bem amarrada, bem urdida, de um personagem interessante.
- É... chegou aos meus ouvidos! As bocas do fuxico ainda invencionaram que esse tal personagem capazmente que fosse o maior que você já tivesse rabiscado em suas linhas. Cheio de ostentações e avultamentos, não é?
- Nem tanto, Coronel! Mas era um bom personagem, com uma história misteriosa, que eu ia procurar desvendar.
- E aí ia encaixotar no ostracismo o velho amigo aqui! De não ser lembrado depois desse tal rei bajulador do Menino Deus!
- Que é isso, Coronel? Nossa amizade está acima de qualquer coisa. Se não fosse por você, pode ser que ninguém se lembrasse de meu nome, nem mesmo me conhecesse.
- Sei não, Zé Cândido, sei não! Aí começaram a avultar umas caraminholas aqui no meu juízo, que diziam que eu ia acabar no fundo de um curral qualquer lá nas aguadas de Mata-Cavalo ou do Sobradinho, deslembrado de todo mundo. Até mesmo Machado de Assis, que encontrei, por acaso, montado numa nuvem ostentosa dia desses, me disse: “Cuidado, Ponciano, seu reinado vai acabar! É preciso fazer alguma coisa, para que sua memória não se extinga. Tome tino, Ponciano, tome tino!” Expeliu até uma frase em língua defunta : "Ab hoc momento pendet aeternitas".
- Estou achando essa história muito estranha, Coronel. Mas... e então?
- Pois, então! Procurei um tal de Ovídio, visagem vinda lá das Romas antigas, versado em priscas letras, para saber o sentido do dito, porque o meu latim é só arranhado lá do colégio dos padres – se lembra? –, e tomei um susto. “Deste momento depende a eternidade” é o que o dito versava, me falou ele. Em seguimento, deliberei que tinha de tomar umas urgências, fazer umas perquirições, antes que meu nome saísse do baú das reminiscências.
- Coronel, não acredito no que estou imaginando...
- Pois é, Zé Cândido, em nome da nossa velha amizade, preciso que você me releve isso, mas tive de requerer a São Pedro seu chamamento antecipado. Antes dos finalmentes que você tencionava pôr na obra do tal Rei Baltazar. Ou não me chamaria mais Ponciano de Azeredo Furtado, coronel de patente da Guarda Nacional, do que tenho honra, e desbravador dos escondidos das moças de portas e tramelas abertas! E depois tem outra, amigo: você não ia precisar de mais um livro, para ser tão afamado quanto eu, sem falsa modéstia.
Com uma gargalhada estentórea que chegou a assustar Vermelhinho, de poleiro em seu ombro, o Coronel bateu o mãozão grande nas costas de Zé Cândido, em feitio de amizade selada, carimbada e assinada embaixo, e o encaminhou ao santo porteiro do céu, para o acerto final das contas, para o fechamento das pendências terráqueas daquele campista desvaidoso. Tudo dentro do planejado, nos conformes do espírito folgazão e invencioneiro de Ponciano de Azeredo Furtado, aprontando mais uma das suas já no coval do mundo dos espíritos.

2 comentários:

  1. Criador e Criatura finalmente reunidos para selar a eternidade. Dialogo delicioso, qual refresco de pitanga bebericado na varanda, enquanto se desbrava todos os infinitos possíveis da imaginação.

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  2. Mestre, isso é uma obra-prima, sem puxasaquismo e adulatórios, fantástico!!! E fomos roubados mais uma vez...segundo é o cacete! O Zé Cândido assinaria embaixo seu conto. Parabéns!!!

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