9 de novembro de 2012

CRÔNICA DE CARABUÇU

(Para Said Felício, meu padrinho.)

Eu tinha lá os meus dez anos e ficava olhando o pouco movimento da tarde. Sabia que, quando a noite caísse, a rua ficaria com um borbotão de gente vinda de todos os lados: do Jacó, da Fazenda da Liberdade, dos lados do doutor César Ferola, das bandas do Juca Simplício. E vinha gente de mais longe: da Forquilha, da Serra da Boa Esperança, da Serra do Fogão, da Serrinha, do Mutum.
Minha casa ficava bem na esquina das ruas com os nomes dos vultos mais importantes da vila: o Coronel Alfredo Portugal, avô de meus amigos Élber e Paulo, e Coronel Antônio Olímpio de Figueiredo, o Papai Antonico, meu bisavô. Nessa época, os dois ainda estavam vivos e sem maiores problemas de saúde, para orgulho de suas famílias.
A venda do meu pai era na parte da frente da casa. A moradia, nos fundos. Simples. Composta de uma sala de cruas tábuas corridas, a cozinha e três quartos, onde a família dormia: meus pais, eu, meu irmão e minhas duas irmãs (A irmã mais nova só viria muito tempo depois, com toda a família já morando em Bom Jesus do Norte.). O banheiro, que chamávamos quartinho, era apartado do corpo da casa e ficava no quintal. Mas isto foi um conforto que veio um pouco depois, assim que se instalou o sistema de água e esgoto na vila, que revirou as ruas para a passagem de manilhas e canos. Tão logo terminado o serviço, várias ruas receberam o calçamento que ainda está lá até hoje.
Aí eu ficava olhando a rua, a passagem de um e outro, aguardando a noite, para que pudesse passear com meu padrinho, Said Felício.
Há pouco eu o havia escolhido, entre as opções que meus pais me deram para padrinho de crisma, e nunca me arrependi disto. Ele era da idade de meus tios maternos – imaginava que tivesse, àquela altura, por volta de vinte e poucos anos.
No sábado, ele ia me pegar em casa e passeávamos pela Rua Coronel Alfredo Portugal até a pracinha, que contornávamos da esquerda para a direita, para retonar à rua, até a altura da Coronel Antônio Olímpio de Figueiredo. Quando ali chegávamos, ele dizia brincando:
- Para lá está chovendo, vamos voltar.
Estar chovendo significava não haver movimento, não haver interesse. E voltávamos.
Ele sempre me dava balas ou picolé e tinha uma conversa interessante comigo. Não caminhávamos mudos. Havia frequentemente um assunto. Hoje entendo bem meu padrinho, com seu coração generoso para comigo. Eu tinha o maior orgulho em passear com ele naquelas noites singelas do interior: eu, um menino, ao lado de um rapaz.
No ar, compondo a trilha sonora das noites da vila, ouvia-se o sistema de som do alto-falante do Narck Pontes, com o programa “Músicas em gravações variadas”.
Durante alguns anos de minha vida, o programa do Narck era uma das boas diversões que tínhamos. Podíamos acompanhar os últimos lançamentos musicais, através dos discos de setenta e oito rotações que ele fazia girar no seu toca-discos, para o deleite de todos.
Às vezes, havia uma atração forânea: um parque de diversões, um circo, uma tourada, que vinham até a vila mudar um pouco a rotina que se arrastava meses a fio.
Então a ebulição era evidente.
Lembro-me, por exemplo, do Gran Circo Pan-Americano, cheio de atrações incríveis, como o globo da morte, que quase não tinha coragem de olhar, sempre com medo de que os motociclistas se espedaçassem durante a apresentação.
Também me recordo da tourada do Reco, um homem gordo, que desempenhava a função de palhaço durante as pegas de boi. Acho que sua participação galhofeira servia para amenizar um pouco o nervosismo da plateia ao assistir o espetáculo. Ele também não tinha mais o físico adequado à função, evidentemente.
Na festa anual da vila, um correr de barraquinhas era armado dos dois lados da rua lateral à pracinha. Elas eram sempre iluminadas com lampiões de carbureto, que exalavam um cheiro característico, que ficou marcado em minha memória. Traziam sempre uma profusão de coisas coloridas, de brinquedos, de jogos, que eu desejava muito. No entanto, filho de família pobre, quase sempre tinha de me contentar com aquilo que era possível ao meu pai comprar.
O último dia da festa começava com a alvorada da Lira Operária Bonjesuense, às seis horas da manhã. A banda percorria as ruas da vila, executando dobrados e marchas militares, e era maravilhoso ser acordado por aquele som.
No fim da noite, os fogos de artifício encerravam a festa e deixavam nos olhos e nos corações de meninos como eu a certeza de que a vida tinha lá seus encantos, ainda que estivéssemos quase perdidos no interior do país.
Muitos anos depois, ao voltar para a festa anual da vila, ouvi de meu primo postiço Amândio Salomão, casado com minha prima Tereza, sob a emoção da mesma e simples queima de fogos, que tinha inveja de nós, nascidos naquele pequeno pedaço de terra fluminense, como se isso nos fizesse pessoas compulsoriamente felizes.
Talvez! Pode ser! Quem sabe?

Imagem em cienciasaqui.blogspot.com.

5 comentários:

  1. Nós fomos felizes, Mestre. E, hoje, sabemos disso.

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  2. As coisas mais simples, hoje impensáveis para as crianças, faziam-nos ser as crianças mais felizes do mundo!
    Curioso o nome do Coronel: Alfredo Portugal!... Meu avô era oficial e chamava-se Portugal!... Alfredo sou eu!...
    A expressão: "- Para lá está chovendo, vamos voltar."
    Também nós, quando rapazes quando passeava-mos com as meninas, chegando a rua sem movimento, tinha-mos a expressão: "- Para lá é Marrocos, vamos voltar!"

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  3. Muito bom ler sobre Carabuçú, o local de origem de minha família. De lá, guardo as lembranças da casa do vô Zé e da vovó Jandyra. Quanto a Narck, eu o conheci! Irmão de um tio meu, o Niltinho. Havia, também, o Nilson, marido da tia Darci. Bom demais relembrar Carabuçú. Abçs!

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    1. Obrigado pela leitura e pelas palavras, Luis Otavio. Sinta-se em casa.

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