3 de novembro de 2012

CONTO DE FINADOS: A MORIBUNDA

Imagem em flickriver.com.

Eu tinha por volta dos meus doze anos, e tia Vicentina já era moribunda há dezessete, como era da ciência da família. Assim, quando nasci, ela estava para fazer a passagem há cinco invernos. Talvez tenha sido a mais longeva agonia pré-morte de que se tem notícia lá para as bandas de Liberdade. Uma coisa é a pessoa ter uma doença crônica degenerativa e ir definhando até o fim; outra é estar com um pé praticamente na cova diuturnamente, sem descanso, por um período tão longo da existência e parecer gozar da mais plena saúde. Que eu me lembre, nunca vi tia Vicentina mal, embora ela estivesse morrendo sempre.
Pois tia Vicentina quase morria uma vez por semana. E era ela mesma quem anunciava isto, com alarde. E esbanjava vitalidade entre uma e outra ocasião.
Depois que ela se decidiu em estado de morte - na verdade isto foi uma decisão sua, já que não havia indicação médica que a justificasse -, por volta de 1946, suspendeu toda atividade laborativa e passou a aguardar a infalível, "aquela uma", como costumava dizer. Nem mesmo seus bordados e tricôs, duas atividades apropriadas para esperar a morte, ela fazia mais.
E concentrou todos os seus esforços nessa espera angustiada do último suspiro, da derrocada final, quando passaria ao pó das lembranças. Nesta função, fazia questão de anunciar a todos que estava no fim. E fazia recomendações detalhadas de seu enterro e da divisão de suas coleções de bonecas de biscuit, de garrafinhas de Coca-Cola e da Revista do Rádio. Também dizia com minúcias as sensações que lhe indicavam a condição de moribunda.
- Não passo desta sexta-feira, Arismar. Sinto que chego ao fim. - dizia sempre ao seu marido, que era irmão de minha mãe.
No início, tio Arismar se assustou com aquilo, mas, depois de seis meses sem ver confirmada a morte anunciada, voltou ao seu joguinho de sinuca no bar do Mateus, lá na rua da Coreia. Às vezes, estava estudando minudentemente a tacada para encaçapar a bola sete no fundo da mesa, quando surgia um menino esbaforido a dizer:
- Corre, seu Arismar! Dona Vicentina mandou dizer que morre agora mesmo, sem falta!
Tio Arismar, tranquilamente, ainda passava giz no taco, esfregava pó por entre o fura-bolo e o mata-piolho, mirava bem e dava uma tacada seca, puxando a bola de jogo, para que não suicidasse. Se houvesse um gole de cerveja no copo, virava-o goela abaixo e dizia resignado:
- Aguenta aí, parceiro, que vou em casa ver de que a mulher não vai morrer hoje.
E, invariavelmente, retornava, trinta/quarenta minutos depois para retomar o curso natural do jogo, como se nada de anormal houvesse acontecido.
E, se tio Arismar já não se apoquentava com isto, muito menos o restante da família. A não ser eu, que ficava aguardando com certa ansiedade o passamento da minha tia, para herdar sua linda coleção de garrafinhas, como me garantira. E me preocupava com esse adiamento infindável do desenlace, por temer que ele ocorresse depois dos meus quinze anos, quando então só teria interesse por garotas, conforme via com meu irmão e meus primos mais velhos. Achava um desperdício que eles não gostassem da coleção de garrafinhas e ficassem trocando informações sobre as meninas de sua idade.
Mas o tempo ia passando e tia Vicentina, a cada semana, parecia ganhar forças não se sabe de onde e recalcitrantemente não morria, apesar de suas convicções.
Tenho para mim que tia Vicentina não fosse realmente doida a ponto de inventar uma coisa dessas. Mas era muito esquisito que passasse todo esse tempo tentando angariar um pouco da piedade alheia com seu pretenso grave estado de vida. Porém ninguém mais ligava para ela. E, a cada conversa com as amigas e vizinhas, em que pormenorizava sua malquerença com a vida, ninguém, na verdade, lhe dava ouvidos. Ela dizia e o interlocutor estava em outras paragens. E muitas vezes notei que um e outro eram pegos de surpresa por sua pergunta-teste:
- Mas não é mesmo, Guiomar?
E a amiga tinha de dizer que era isso mesmo, sem tirar nem pôr, mas sem saber absolutamente do que se tratava, pois pensava na morte da bezerra, enquanto ela escandia suas lamúrias.
Contudo era só a pessoa convidá-la a experimentar um pedacinho do bolo de laranja, ou convidá-la para comer um naco de papa de milho verde, para que ela aceitasse, embora dissesse sempre que não andava comendo nada, porque tudo lhe fazia muito mal.
Um dia, um menino mais afoito entrou pelo bar do Mateus adentro a gritar a plenos pulmões:
- Corre, seu Arismar, que dona Vicentina não passa da hora do almoço!
Tio Arismar se preparava, mais uma vez, para meter a bola sete na caçapa do meio da mesa de sinuca e se assustou de tal forma com o estardalhaço do moleque, que teve um piripaque qualquer no coração de cair morto no chão de cimento do bar. Antes disso, porém, com o espasmo da morte tomando seus músculos, rasgou o pano verde da mesa com a ponta do taco e atirou a bola de jogo na vitrine de bons-bocados e marons.
Foi um deus nos acuda! Minha mãe e meu pai, que moravam pertinho do bar, correram imediatamente para lá e já o encontraram de passagem comprada para o outro mundo.
Durante o velório, meu primo Itamar, já um rapaz taludo, filho de outra irmã de minha mãe, dizia que a doença de tia Vicentina matara tio Arismar. Segundo ele, era a primeira vez que a doença de um matava o outro. Tio Arismar, coitado, morreu por tabela, como nos jogos de sinuca de que gostava tanto. A mulher é que era moribunda e ele foi quem espichou as canelas.
Pois tia Vicentina ouviu meu primo comentar isso no fundo da capela, onde era velado o corpo do meu tio, e saiu com desabonações sobre o morto.
- Esse Arismar sempre foi um imprestável! Só não morri antes dele, porque sabia que ele não ir providenciar nada. Sempre foi um homem sem iniciativa. Aí tive de adiar a minha morte, para tentar não deixar as coisas desandarem. E vejam só o que ele me apronta: uma desfeita deste tamanho. Agora, pelo menos, posso morrer em paz!
E continuou falando do meu finado tio, ali mesmo, de corpo presente, com a sem-cerimônia que os que vão morrer se dão: o direito de falar tudo o que pensam, como nos velhos filmes em preto e branco.
Algum tempo depois, quando me tornei rapaz, vim para a cidade grande estudar e procurar tocar a vida.
Há pouco, passados muitos anos, recebi telefonema do primo Itamar sobre a morte de tia Vicentina, aos noventa e dois anos de idade.
Então decidi-me ir ao velório da mais longeva moribunda que Carabuçu – a vila até havia trocado de nome –  conhecera, não porque tivesse grandes estimas por ela, mas porque queria a coleção de garrafinhas de Coca-Cola, que ela ainda guardava na cristaleira da sala e que, por direito sucessório, a mim pertencia.

6 comentários:

  1. rsss...muito boa essa narrativa... Já conheci gente que se parece muito com a tia Vicentina!

    Vou compartilhar com meus alunos do Curso de Ciências da Religião. Eles trabalham com o Ensino Religioso - Rio Grande do Norte, Brasil - com o Ensino Religioso pluralista e vivemos à cata de contos e narrativas que abordam temas como a morte...Uma delícia de ler!

    Abraço do Pedra

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  2. Obrigado pelas palavras, Pedra, e também pelo uso do meu texto. Espero que sirva.

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  3. Que texto maravilhoso! Dá para rir, para pensar e para comparar com alguma tia Vicentina que também tenha existido na nossa família!...
    Penso que não te importas que eu coloque o "link" no meu mural do "Facebook"!... Gostava que alguns amigos meus lessem este texto...
    Aquele Abraço

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    1. Obrigado pela força, Moreirinhas! Pode usá-lo à vontade. Abraços.

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  4. Conto muito rico em detalhes! Gostoso de ler! Parece engraçado! Mas estou certo que existem muitas "Vicentinas" por aí, sempre se lastimando e resmungando, moribundamente, (palavra inventada), que se enquadra perfeitamente na vida das pessoas que não amam e nem lutam pela vida.

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    1. Verdade, Josias. Há muitas por aí. Obrigado pela leitura e pelo comentário.

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